3 de dezembro de 2021

1º Prémio - 2021

Porta de pérola

Produzes cerca de mil e quinhentas metades de ser humano por segundo e agora quatrocentas milhões delas estão prestes a entrar na parte final do caminho de saída. A situação é corriqueira, mas hoje merece atenção porque pela primeira vez existe uma metade esperando do lado de fora. Não foi fácil armar isso. Bilhões de anos de evolução moldaram cada detalhe de vossos corpos para que pudessem se atrair e executar os movimentos de uma dança bem precisa; tivestes de vencer a repressão, a timidez, a falta de experiência e os obstáculos práticos; dentro do corpo dela as metades esperaram por treze anos para começar a descer, uma a uma, mês a mês, até que esta se disponibilizasse para este momento; dentro de teu corpo as metades maturaram por sessenta e quatro dias, viajaram por seis metros de epidídimo e canal deferente, se banharam em fluidos seminais, foram guiadas pela dança a se posicionar onde estão agora, quase, quase, quase saindo; e o longo drama vai ter resolução na próxima fração de segundo porque não tens mais como fugir da escolha. Tiras ou não? Os olhos dela estão aflitos, virando, quase fechando, quase desistindo e tu te alegras com o quanto ela se esforça para te manter no campo de visão, tu que nunca imaginaste ser capaz de provocar algo como o que vês agora, a não caber no corpo, a transbordar como se fosse suor, a sair com a voz, com os espasmos, com o gesto de te apertar e te arranhar na cintura, a se mostrar interminável mas que absurdamente queres terminar como nada quiseste na vida, não por causa do final mas por causa do caminho, um passeio pelo paraíso, um olimpo prometido pela biologia com hormônios e sinapses e neurotransmissores, um júbilo tão violento que não mereceria maiores considerações se o ser humano não fosse tão complicado, porque no fundo sabes o que fazer, ou melhor, o que não fazer, não sejas estúpido, este é um risco a não se correr, o pavor que tens do que pode acontecer!, mas, ai, luta injusta!, a convicção não encontra espaço no puro e tenso prazer da mente atual, a resistência precisa agir como clandestina, lá do subconsciente, se fazer presente como vaga hesitação e por fim ato reflexo de movimento para trás quando o líquido começa a avançar pelo caminho final, movimento sensato mas inútil porque tua companheira esboça com o indicador e o polegar da mão esquerda que segura o seio direito um gesto de pinça a apertar o bico e por causa disso perdes o controle, empurras bem fundo e decides ser merecedor deste êxtase ao qual agora não mais renunciarias mesmo que o firmamento começasse a desabar por cima de ti. Afonsa, tempestade adorável em forma de criança, vai nascer ainda este ano no primeiro dia da primavera.


Afrânio de Melo Júnior
Brasil

2º Prémio - 2021

“E se o céu me caísse em cima”, Maria devorava o novo livro, como tantos outros antes deste, quando adormeceu. Sonhou que, enquanto lia, notava uma estranha dor na barriga, quase impercetível, e que sentia como um líquido quente escorregava pela cara interna das suas coxas. O mal presságio percorreu-lhe o corpo num segundo. Soube-o como sabem todas as mães, com esse mágico sexto sentido que obtêm durante os 9 meses que carregam o filho no ventre.

Primeiro, num ato irreflexivo, apertou a mão contra a barriga, essa que albergava o seu pequeno Tiago de 8 meses. Logo, deixou o livro no sofá, aberto pela metade, levantou-se e ligou ao seu marido. Jorge, que em menos de 20 minutos, suado e preocupado, chegou a casa, encontrou a sua mulher muito quieta, pálida, com os olhos brilhantes de lágrimas que teimavam em não brotar e as calças manchadas de sangue. Inquieto pelo que via e lutando contra o instinto de abraçar a sua mulher e afirmar, sem garantias, “vai correr tudo bem”, acompanhou-a ao hospital, submergido num tenso ambiente de silêncio quase fúnebre.

Maria, com as mãos apoiadas na barriga numa tentativa de proteger esse ser por quem desprendia um amor inexplicável e que temia não chegar a conhecer, foi atendida de urgência e encaminhada ao bloco operatório. Em menos de 15 minutos, o cordão que a unia ao seu filho, num vínculo não só físico, mas também sentimental, tinha sido cortado. Pelas suas veias corriam várias drogas; umas para as dores da cirurgia, outras para a ansiedade do momento e outras que a mantinham entorpecida, inconsciente de tudo o que estava a acontecer à sua volta. Infelizmente para Maria, e para tantas outras mulheres, ninguém teve a bondade de inventar um remédio que curasse o coração partido de uma mãe, que nunca chegaria a sê-lo.

Nesse pesadelo efémero, onde os fragmentos das memórias misturavam-se e condensavam-se no que poderia ter sido um segundo ou uma eternidade, passariam várias horas até ser consciente de que o seu filho não sobrevivera ao descolamento da placenta.

Era uma quarta-feira, como tantas outras antes, quando descobriu que o amor de mãe dói, que a perda de um filho pode ser real e injusta e, soluçando adormecida, compreendeu que a sua vida nunca mais seria a mesma. Imaginou, ainda, que desde esse lugar sonhado observava uma etérea noite repleta de estrelas distantes e, qual Atlas, entendeu o intolerável castigo de carregar o peso do mundo aos ombros. Suplicou, devaneando, que o firmamento cedesse, que o céu lhe caísse em cima e lhe aliviasse essa pressão que acolhia no seu peito e que a sufocava lentamente.

Despertou a chorar. Essa dor, a de uma mãe com o coração despedaçado, prosseguia, viva e ardente; e o livro continuava imóvel em cima do sofá, aberto pela metade, tal como o deixara no sonho. Fechou o livro cujo final nunca chegaria a ler e notou como se movia o seu pequeno Tiago. Pousou a mão na barriga como um cumprimento, sorriu; o céu não caíra.


Pedro Manuel Beira Salvador
Redondo / Espanha

3º Prémio - 2021

A minha mãe

No dia em que morreu a minha mãe, decidi que queria ser escritora. A minha mãe nunca aprendera a soletrar mais do que o seu próprio nome, mas contava muitas histórias da sua meninice, da meninice dos seus pais, e da minha também, do que eu não tinha como lembrar. 

Eu não passava uma noite sem ouvir aqueles contos sem fadas, mas igualmente fantásticos. Antes de dormir, uma nova história. E outra. E outra. Até que a minha mãe esgotava o repertório e voltava ao início do rol, só que dessa vez a história ganhava mais outro detalhe, qualquer coisa que ela não teria dito antes, uma nova luz que surgia e tornava mais claros os contornos desse mundo meio real e, suspeito agora, meio inventado.

- Era uma vez, uma menina que... - começava a contar, invariavelmente. A menina que regava feijões, a menina que brincava na fonte, a menina que queria um cão, a menina que ia ao lagar, a menina que não queria crescer.

Na escola, os meus colegas sonhavam com as personagens das telenovelas brasileiras, com vistosas atrizes e corajosos galãs, enquanto a minha imaginação era alimentada pelas histórias do pequeno universo que era aquela vila onde morávamos, as suas pessoas, os seus lugares - sempre tão melhores, por terem como narradora alguém tão especial.

Depois, ganhei o gosto pela leitura: jornais, revistas, os novos sinais de trânsito que um dia semearam na praça. Passava a camioneta dos livros, e lá ia eu. Pedia para me deixarem tantos quantos as regras permitissem, o senhor da camioneta dizia dois, mas às vezes até deixava três. Ainda assim...

- Era uma vez, uma menina que se fez à vida. Fugiu para a cidade e por lá ficou - quase ouço a minha mãe narrar, do jeito como narrava décadas antes.

Não decidi ser escritora como decidem os escritores a sério, quase desde o berço. Apesar do amor aos livros, a idade adulta trouxe responsabilidades, pessoas e atividades diferentes. Tive outras profissões, bastantes e variadas. Hospedeira, secretária, dona de um café. Esposa, mãe, avó.

Mas, no dia em que a minha mãe morreu, decidi ser escritora. É meu desejo deixar em papel todas as histórias que foram contadas e as que estão por contar.

Um dia destes, alcancei o grande objetivo: terminei o meu primeiro livro. Poderia acontecer qualquer coisa, uma revolução ou um apocalipse. Se o céu me caísse em cima, eu pegaria na minha obra e rogaria a Deus: aqui tendes o testemunho desta humilde existência. Mesmo se o céu me caísse em cima, uma parte de mim já não se perdia com a morte do corpo. As palavras. E a minha mãe.


Beatriz Helena Villegas Canas Mendes
Vila Viçosa

27 de setembro de 2021

Regulamento do Prémio Literário Hernâni Cidade 2021


Podem concorrer a este prémio todas as pessoas que o desejem, desde que aceitem e cumpram o disposto neste regulamento.


Na edição de 2021 a modalidade é: Texto narrativo

«Mais tarde, já na altura dos 18 anos, uma doença teimosamente prolongada que me teve nos arredores da tuberculose, para lá me levou em busca da saúde que o aroma saudável dos pinheiros e o ar lavado da altitude, na verdade, me restituíram; e quando regressei do cativeiro na Alemanha, por lá passei umas férias grandes, todo entregue à preparação para a actividade universitária que ia iniciar.»

CIDADE, Hernâni - A serra d'Ossa e o seu convento
in: Boletim da Junta de Província do Alto Alentejo, Évora, 1959

Tema: E se o céu me caísse em cima...


Cada participante só poderá concorrer com um único trabalho.


O trabalho não deverá exceder 1 página e será enviado em quatro exemplares. Papel de formato A4, dactilografado, com espaço e meio de entrelinhamento, caracteres de tamanho 12, letra Times New Roman.


O trabalho será subscrito com um pseudónimo e far-se-á acompanhar de um envelope fechado com a indicação exterior do pseudónimo e idade do concorrente. Esse envelope conterá obrigatoriamente no seu interior a identificação do concorrente: nome completo, idade, morada com indicação do código postal e número telefónico para eventual contacto.


O trabalho poderá ser entregue:
a) Em mão na Biblioteca Municipal de Redondo

b) Pelo correio para:
Biblioteca Municipal de Redondo
Prémio Literário Hernâni Cidade 2021
Rua D. Arnilda e Eliezer Kamenezky, 43
7170-062 REDONDO

c) por email para premioliterariohernanicidade@gmail.com desde que:
1. seja enviado em anexo
2. o título do trabalho seja o mesmo que o nome do anexo
3. venha assinado com pseudónimo
4. em segundo anexo no mesmo email seja enviada a identificação do concorrente
5. cumpra as restantes cláusulas do regulamento


O prazo de receção dos trabalhos termina a 29 de Outubro de 2021, findo o qual se procederá à sua apreciação e classificação por um Júri de quatro elementos de reconhecida idoneidade, aos quais será vedada a participação no concurso, e de cuja decisão não haverá recurso.


Serão atribuídos

a) Três prémios: 1º, 2º e 3º, a que correspondem, respetivamente, as importâncias de 750, 375 e 250 Euros.

b) Três prémios Infantojuvenil dos 14 aos 17 anos

c) Menções honrosas a outros trabalhos que se distingam, em número a definir pelo Júri.

d) Diplomas de Participação a todos os concorrentes.


O Júri poderá não atribuir qualquer dos prémios desde que considere haver falta de qualidade nos trabalhos apresentados.

10º
Os concorrentes premiados serão avisados dos resultados do concurso, sendo os prémios entregues em cerimónia pública a realizar no dia 4 de Dezembro de 2021, pelas 15 horas, no auditório do Centro Cultural de Redondo.

11º
A entidade organizadora reserva-se o direito de utilizar os trabalhos recebidos, quer expondo-os publicamente, quer publicando-os na imprensa nacional ou regional, ou ainda proceder à sua encenação ou representação em tempo oportuno.

Organização
Município de Redondo

1 de fevereiro de 2021

Menção Honrosa - 2020

Português Suave

Perdi o medo de ter muito, mas mesmo muito medo.

Tinha medo do isolamento compulsivo num quarto tenebroso imposto no Hospital Psiquiátrico Magalhães Lemos, porque me prenderam como se fosse um criminoso. Agora tenho medo desse tipo de medo.

Medo, que virou miraculosamente coragem... coragem e tino, para não voltar a ter um esgotamento tão grande como o da crise de 2008. Para não voltar a ser atirado como um animal mal cheiroso para o canil municipal.

Era o medo de saltar de avião que nos punha, a nós paraquedistas, a correr para a porta do abismo.

O medo até pode ser bom aliado. Como diz o povo ao medricas: “...abre os olhos para a vida...” Porque quem vive no medo não vive.

Agora, só me resta ter mesmo medo que se acabe o tabaco no meio de uma noite mal dormida. Inquietação...Inquietação… Lá vem mais uma insónia. Alguém me arranja um Português Suave?

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Tiago Manuel de Figueiredo Marques - Porto

Menção Honrosa - 2020

O MEDO

Medo: nome de nascença singelo. Órfão de sobrenome porque nem o pai, nem a mãe quiseram que se lhe conhecesse a ascendência. Nasceu num dia escuro e gélido, durante o qual, conta-se, não houve à superfície da terra um único gesto de amor. Apátrida e sem família, vagueia, desde então, como um ladrão usurpador de sonhos e de futuro. À minha vida, chegou antes de eu ser parida. Antes até de ser concebida. Meus pais deram-lhe abrigo ao adiar a minha vinda. Temiam que padecesse da mesma doença da primeira filha. Quando, finalmente, ousaram sonhar-me, nasci e escapei à sombra da temida enfermidade. Mas o medo, ferido no seu orgulho por não ter levado a melhor, jurou que haveria de rondar-me. 
Durante quatro décadas de uma existência cheia de afetos, conquistas e alegrias, mas também de trabalho em excesso e esquecimento de mim, o medo vigiou, discretamente, a minha casa: medo de errar, medo de desapontar, medo de dizer não, medo de não estar à altura das exigências… Convenhamos: o seu modus operandi não é lá muito criativo! Nem mesmo o medo de ser contaminado, tão em voga nos tempos de pandemia que correm, revela grande originalidade. 
Um dia, porém, o medo armou-se em valente, arrombou-me a porta e apresentou-se, ufano, de relatório médico na mão: cancro de mama. Um buraco no estômago, um tremor no corpo, um nó na garganta, as lágrimas e a ausência de chão. Mil perguntas. E a crença avassaladora de que ele, o medo, era gigante, poderoso e implacável. 
Mas não era. Para surpresa minha, também dessa vez ele perdeu. O amor agigantou-se na minha vida, em torrente abundante e curativa de presenças, palavras, ajudas, hospitalidade, delicadezas… e o medo teve de se retirar. Medo e amor não coexistem. 
Obstinado, porém, não deixou de rondar. Na verdade, fui eu que consenti, na franja dos meus dias, a dúvida do “e se?”, essa brecha por onde ele sempre entra e começa a minar-nos a fé, a afastar-nos do amor. Novamente gigante, repetiu a façanha, e ainda com mais vigor, esfregou-me na cara, no corpo e na vida uma recidiva. 
Vivo, pois, arrancada, mais uma vez, ao meu quotidiano. Confrontada com a vulnerabilidade e a morte. E eis que me descubro estranhamente calma. Surpreendentemente lúcida. Como se estivesse a romper as águas uterinas da minha imanência e fizesse, agora, o meu próprio parto, nascendo a cada dia que passa, para a inteireza do momento presente, para o “aqui e agora”. Hoje, só por hoje, apenas o presente. E se pergunto “Onde estás agora, medo?”, parece-me que está sentado aqui ao lado, talvez ao meu colo, a ser embalado como nunca foi por ninguém. A aprender a estar só no momento presente, sem pressa de ir usurpar sonhos e futuro a alguém.

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Paula Cristina Direito Rabaça - Manteigas

Menção Honrosa - 2020

 

Controle.

Sentou-se ao meu lado, tocando-me delicadamente.

Fingi ignorá-lo, tornando-me senhora de minhas emoções.

Acercou-se.

Preocupação ampliada.

Algum controle restante.

Mais tempo, menos racionalidade.

Como resistir?

Era eu pensando ou obedecendo aos seus comandos?

Andei de um lado a outro em busca de alívio.

Ele me seguia e se fortalecia

Eu combalia e o sentia agir sobre mim.

Tornara-me sua presa e ele brincava comigo de maneira cruel.

Minhas lágrimas o divertiam e o alimentavam.

Já dentro de mim, fez meu corpo sentir debilidade.

O telefone tocou e aquela voz botou fim às suas perversidades.

Alguma coisa dele, porém, ainda pula em meu peito.

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Susana Pereira Franco Salimson - Brasil

 


Menção Honrosa - 2020

Uma menina presa na escuridão

    Um mar de sangue nas pernas da criança. No meio da cidade que por estes dias vê com os olhos feitos em lágrimas o verão a fazer as malas, eu presa no banco deste parque a ser fustigada pelo mesmo sentimento que há anos me queima as entranhas como se tivessem atirado um barril de combustível e um isqueiro para dentro de mim. Nem um pio, uma nódoa de eco no parque, apenas um túnel de soluços que sai de mim mesma a sufocar os estilhaços do meu choro enquanto a noite silenciosa olha-me condoída. Muitos anos envolta disto, a mão dele gorda e rugosa estendida no ar em direcção à minha cara e a voz trôpega de tanto bagaço com o mesmo tom ameaçador, 

    dou cabo de ti se contares a quem quer que seja,

    O medo continua me fazendo sorver a escuridão com o mesmo sofrimento com que os mortos devoram suas próprias unhas. Não consigo exumar-me desta cova, porque muitos anos envolta disto e a mão gorda e rugosa do meu pai estendida para mim; eu pequenota deitada na cama do quarto da nossa casa do Milreu com o sangue a descer-me pernas abaixo e o corpo todo a tremer e a desfazer-se em cacos de arrepios; muitos anos envolta disto e eu sem perceber que demónio entrou-lhe no corpo, apenas o bagaço a tilintar na voz 

    dou cabo de ti se contares a quem quer seja.

    O medo é como aquelas doenças maldosas que quando nos entram no corpo comem-nos silenciosamente órgão por órgão até apodrecermos. Desde que o meu pai fez aquilo comigo nunca consegui contar a ninguém o que aconteceu naquela noite fria e chuvosa. Aquele corpo pesado continua em cima do meu corpo nu; o sangue que apodrece comigo enquanto cresço continua descendo-me pelas pernas; a sujidade no meu corpo e a dor a queimarem-me mesmo depois de meu pai puxar as calças para cima e fechar a braguilha.

    Ninguém sabe, mas muita nuvem à minha volta e o medo continua a prender-me neste poço escuro. Muitos anos envolta disto. Quanto mais cresço sinto-me mais incapaz de sair deste casulo e contar a todo o mundo o que aconteceu. O medo sempre tomando partido da maldade; eu apodrecendo por dentro e a voz do meu pai sempre para mim 

    dou cabo de ti se contares a quem quer que seja.

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Miguel Luís José - Lisboa 

Menção Honrosa - 2020

O medo

Do autofalante a voz estridente e poderosa: fiquem em casa!
E o mundo lá fora tomado por um bicho horrendo ulcerado de pústulas que nos cerca e ameaça, visível no espelho embaciado das almas em retraído alvoroço.
O sol nunca foi mais brilhante, contudo. As praias entregues ao doce som das suas ondas, sós e mais belas do que nunca. E os mortos sobem nas tabelas coloridas à escala planetária em números que sibilam, cabisbaixos. E nós a encolher nesse caminho estreito, de ameaça em ameaça e, assim encolhidos, espiamos com olhos vorazes essa curva que sobe e não para. 
No horizonte, cresce e torna-se visível a barbárie. Sinal agudo em crescimento contínuo nascido no ventre em sobressalto e fechado connosco nesse lastro que nos aperta. É o absurdo que reina e, ao seu lado, todas as coisas esmorecem chamadas agora por estranhos nomes entre seringas e máscaras e gel desinfetante.
E tudo por culpa nossa, dizem. E pedimos aos deuses que nos devolvam o que era nosso, mas os contos e as fábulas enterrados à força nos sítios onde nada cresce ganharam arestas e faces cortantes, mesmo a calhar para entendimentos obtusos ligados por muitas falas e em retificação constante, porque os números descem um pouco, para logo subir desgovernadamente, arrastando consigo milhões de olhos temerosos, suspensos dessas linhas e dos magmas que somos.
Fiquem em casa! Sim, fechámo-nos obedientemente em casa num silêncio turvo, desconfiado e consentido, capazes de nada, porque são muitas as vozes, quase sempre chegadas de lugares distantes, suspensas por perguntas que ninguém sabe: alfabetos ainda desconhecidos, assombros balbuciantes acabados de nascer. Abrupto e negro o seu reflexo nas nossas salas onde, exangues, escorremos debruçados às janelas com vista para o estrondo das vidas embaladas e levadas em macas silenciosas. Mesmo assim, fazem-se listas intermináveis de desejos em lugares paradisíacos num futuro em queda livre. 
Fiquem em casa! E acenamos com as mãos aflitas. Acudam! temos as nossas musas dentro de águas subterrâneas e os nossos melhores sonhos pararam de sorrir para os dias agora velados de pano escuro. Acudam! E atiramos os olhos vazados para longe, levados ao acaso pelo grito feroz e livre das gaivotas. Os medos ficaram.
E nada será como dantes, repetem todas as coisas que falam.

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Maria Clara Vieira de Andrade - Portimão


29 de janeiro de 2021

Menção Honrosa - 2020

O fim dos dias

Ao descer do autocarro, Clara olhou para o velho relógio de pulso e notou que, pela primeira vez em vários anos, seria a primeira pessoa a chegar a casa. Durante a hora de almoço na fábrica, recebeu a chamada telefónica que pôs fim ao seu segundo trabalho como empregada doméstica que durava há vinte anos. Do outro lado da linha, Júlia dizia-lhe que o contrato de venda da casa da mãe estava assinado e que iria voltar para a Suécia. Não iria precisar de mais nada da sua parte, os novos donos tinham ficado encantados com o estado de limpeza da casa e o último pagamento, com “uma gentileza”, iria ficar num envelope na Pastelaria Doce Mel. Clara, com o telemóvel numa mão e um garfo na outra, agitou a cabeça em conformidade, o que resultou num silêncio no telefone. Júlia sentiu aquela pausa desconfortável e acrescentou, antes de desligar: nunca se esqueça durante todos estes anos foi como se fosse da família. “Com certeza, menina. Tudo de bom” disse Clara e deixou a testa cair e repousar, por segundos, na mesa do refeitório. Sabia que aquela notícia ia chegar desde Abril, quando a matriarca viúva Emília teve um ataque cardíaco fulminante e Clara a encontrou no chão da sala de estar. Há duas décadas que, depois do turno diário na fábrica de roupa interior feminina, Clara trabalhava naquela casa, duas a quatro horas, conforme as tarefas que a patroa Emília tinha destinadas para si. Somando aos dois empregos, o tempo que passava em transportes públicos, nunca chegava a sua casa antes das dez da noite. Apesar do extremo cansaço que sentia, a hora tardia de chegada a casa diminuía a probabilidade de encontrar o seu marido ainda acordado. O que diminuía a probabilidade de ter que se submeter às suas perguntas bruscas e agressivas, o que diminuía a probabilidade de encontrar arranhões e nódoas negras em partes do corpo, ao acordar. Era no caminho da paragem de autocarro até à fechadura da sua casa, que a ansiedade e o medo que trazia no peito se transformavam em dois monstros gigantes que a acompanhavam de mão dada até à entrada de sua casa. Abrindo devagar a porta de entrada, a luz da sala estar acesa ou apagada dava escolha aos dois gigantes para entrarem, lado a lado, com Clara ou voltarem para o seu peito. Clara sabia que, a partir de agora, chegaria sempre mais cedo que o marido e que estaria dentro de casa, quando ele abrisse repentinamente a porta de entrada. Subiu as escadas do prédio em passos demorados e enquanto rodava a chave na porta percebeu que, enquanto estivesse naquela casa, os monstros teriam morada.

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Liliana Valente Cruz - Forte da Casa 

Menção Honrosa - 2020

O medo

Temo a guerra, a pobreza e os sonhos adiados,
temo a fome, a tristeza e os amores desencantados.
Temo os invernos sem chuva e os verões sem calor,
temo a esperança perdida e uma vida sem amor.
Temo as palavras que ferem, o cinismo e a falsidade
e a deslavada mentira disfarçada de verdade.
Temo os beijos sem doçura e os abraços sem chama
e temo o dobrar dos sinos por aqueles que se ama.
Temo a dor e temo a morte, a loucura e o esquecimento,
temo depender da sorte e temo o arrependimento.
Temo as farpas do ciúme e os espinhos da rosa,
temo a poesia morta e o vazio da prosa.
Temo a lágrima escondida, aquela que ninguém vê
e o soluço abafado que não encontra um porquê.
Temo as questões sem resposta e os desejos impossíveis,
os segredos mal guardados e os corações insensíveis.
Temo a ausência do vento que não ondula as searas,
os pesadelos dos dias inúteis e as insónias das noites claras.
Temo esquecer as dores que deram valor ao riso
e as portas que se abriram sempre que tal foi preciso.
Temo os outonos sem cheiro de terra molhada
e temo o amor cansado e a morte anunciada.
Temo a renúncia e a resignação de apenas existir,
o egoísmo desenfreado e o amor doentio de quem não deixa partir.
Temo os sorrisos falsos e a cegueira de quem não quer ver,
as madrugadas que não chegam a ser dia e os crepúsculos que não vão anoitecer.
Temo os prantos que desnudam a alma e as saudades que não cabem no peito,
temo a vida mal vivida no pretérito imperfeito.
Temo as areias movediças da vontade e o rochedo aguçado do destino,
temo a ingratidão, a arrogância e o castigo divino.
Temo as mortes necessárias e a liberdade proibida
e a sede de poder pela ambição desmedida.
Temo perder a essência de quem realmente sou
e os caminhos tortuosos na senda por onde vou.
Temo o papão que se esconde debaixo da minha cama
e além das tramas da vida, temo a forma, tão subtil, como esta vida nos trama.

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Josefina Maria Alves da Luz Graça - Lagos  

Menção Honrosa - 2020

O Medo é um Sentimento

O medo é um sentimento
Que vem connosco ao nascer
Pode torna-se um tormento
Que não passa com o tempo
E dura até morrer.

O medo tem dois sentidos
Que devemos de entender
É um que livra dos perigos
E nos deixa protegidos
E outro que nos faz sofrer

Por medo ficamos arrepiados
E o pânico restringe a liberdade
O temor deixa-nos paralisados
Com ele dormimos acordados
No leito onde mora a ansiedade.

O medo pode nos atormentar 
Porque ele nunca tem opositor
Mas apesar de nos amedrontar
Ainda o podemos superar
Nos braços do nosso amor.

Mas quem disser não ter medo
Está mentindo para alguém
Pois todos nós sentimos medo
Nem que seja em segredo
Dos medos que a vida tem.

A lei do medo é um guia
Que não nos pode faltar
Se não ai de nós o que seria
Tudo fazia o que queria
Sem ninguém para castigar.

Mas há aquele medo que persiste
E de todos o que nos bate mais forte
É um terror a que ninguém resiste
É tão cruel que nos deixa triste
Esse medo é sempre o medo da morte.

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Felícia Festas - Hortinhas, Évora

Menção Honrosa - 2020

O Medo x A Audácia

O contrário da palavra medo é coragem. Audácia pra encarar a vida de maneira despretensiosa com parcimônia e cautela.

Engraçado como isso soa e tem a mesma sinfonia, tem também o som de algumas palavras. Embora pretensiosas, passam muitas vezes despercebidas. Hoje, porém, ao ler um jornal sobre criptografia que eu adoro me deparei com uma palavrinha bastante curiosa e muito pouco usada no dia-a-dia: a "audácia".

Segundo o dicionário Houaiss, audacioso é aquele que tem aptidão ou tendência a realizar ações difíceis, não se importando com o perigo (me lembrei da frase do Simba, personagem do filme do filme Rei Leão quando ele fala: "Eu sorrio na cara do perigo, hahahaha"). É aquela pessoa que se caracteriza por se opor ao que está previamente estabelecido, que se expressa com inovação. Que é destemido e não tem medo.

Bom, o fato é que a palavra é muito atraente e positiva, pois remete a desafio e, portanto, a realizar algo que deseja muito, colocando força e dedicação para ser feito. Embora, muitas vezes não pensemos muito no que fazemos diariamente no trabalho e em casa ao agirmos no impulso, no automático, sem medir consequências, o importante é dar o melhor, agir com prudência e cautela, principalmente.

Paralelo a isso, a "audácia" me lembrou um episódio inédito essa semana, bem legal que aconteceu comigo. Na segunda-feira (5), eu fui vacinar a minha gata, Bella, no Centro de Zoonose de Brasília, que é um local aonde os veterinários são especializados em cuidar de cães e gatos. Lá, eles são responsáveis por acolher a maioria dos animais domésticos abandonados do Distrito Federal e colocar para adoção. O local é enorme, super bem organizado e eles são super atenciosos. Ao chegar lá fui atendida em menos de 5 minutos. Foi muito rápido e eficiente o atendimento do veterinário que vacinou a Bella. Fui audaciosa! Por quê?

Eu não tinha noção de como era o local, estava morrendo de medo, era distante da minha casa e, eu não imaginava o que ia encontrar. E por isso, acabei me surpreendendo com milhares de gatinhos e cachorros, loucos por um dono, um lar.

Achei muito fera! Se eu pudesse, pegava todos para mim! Todos é muito, vai?! Mas, uns três eu pegaria! Hahaha. Contudo, já tenho uma gata que amo e cuido com muito amor e carinho. E isso, sim, é o mais importante! Mais do que a minha "audácia" e despretensão do medo, de ter ido lá na Zoonose levar a Bella.

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Eloange Bittencourt Emediato - Brasília

Menção Honrosa - 2020

O silêncio e o medo!

Nunca falamos. Apenas olhamos. Olhamos tantas vezes como se não houvesse amanhã. Percorremos a estrada dos nossos olhos. Sem curvas nem rotundas, sempre a direito. Não haverá o nosso amanhã. Apenas o meu amanhã. E o teu amanhã. Algures. Por aí. Até um nosso próximo reencontro. Quando nos voltarmos a reconhecer seja em que pavimento for. Alcatrão. Calçada. Pedra. Areia. Onde os nossos pés voltarem a andar somente para se cruzar. Sem medo de se entrelaçarem.
Nunca falamos. Sem um mero abraço. Aquele abraço. O único que queria. O teu abraço. Nunca te poderei abraçar. Sentir o teu coração-casa a pulsar no meu peito. Adormecer a almofada do sono no teu colo. Quimeras platónicas. Medo maior que sinto, este de um dia a morte me chegar sem um abraço teu.
Nunca falamos. Nunca te poderei sussurrar que me estremeces o coração. Que me tremes os joelhos. Que és abismo das minhas emoções. Que fico parada porque não consigo andar. Porque as calças escondem o meu vacilar de pernas. Porque me tonteias os sentidos de amor.
Nunca falamos. Nunca te poderei perguntar o que sente essa tua alma ao ler estas minhas palavras. As tuas palavras que ficam a flutuar na minha mente quando te deixo ir. Porque sei que sabes. Que sabemos. Mas nunca falamos. Temos medo. E por isso continuamos a teimar nisto do silêncio.
Nunca falamos. Para te dizer que te sinto especial. Que não sei por que razão és especial. Não o sei explicar. Já perguntei ao universo porque te faz especial aos meus olhos. Mas esse universo continua mudo. Sem nada me dizer. Pode parar o relógio para te conseguir ver. Pode fazer desaparecer o trânsito para correr e olhar um segundo que seja para ti. Mas não me explica isto que sinto ao ver-te.
Nunca falamos. Nunca compreenderemos o medo que nos silencia a voz. Talvez não perceba. Talvez não seja para perceber. Talvez tenha de deixar fluir o que sinto. Não esconder de mim o que sinto. Conhecer-me. Não sei como fazes isso, mas essa tua alma ajuda-me no caminho de encontro a mim. Irónico. Nunca falamos. Mas és força para mim.
Nunca falamos. Parece medo. São os nossos fantasmas reais e imaginários. Aqueles que nos perseguem nos pesadelos. Já os conheceste? Aqueles que me deixaste e os que te enviei para te atormentar. Para nunca nos sentirmos sozinhos de nós mesmos. Nunca falamos. Porque não conseguimos enfrentar o nosso fantasma. O medo aterroriza-nos a coragem.
Nunca falamos. Não posso chegar ao pé de ti e dizer como és absurdamente bonito. Que és amor. Há uma sociedade que não me permite dizer isso. Que nos ata os dedos num cordel que farrapa a pele. Por isso nunca falamos. Essa corda sufocou-nos a voz.
Nunca falamos. Continuemos na nossa conversa de almas. Porque as almas não sentem medo. Amam. Eu escrevo-te o meu coração. Tu ouves-me na tua alma. Porque teimamos nisto do silêncio. Até ao dia em que rasgarmos os medos das palavras.

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Ana Cristina dos Santos Gomes - Amadora

3º Prémio - 2020

Se um dia o medo...


E se um dia o medo vier?
Que estridentes trompetas o anunciarão, se ele um dia chegar como uma invisível ameaça, cruel e infame, vinda dos longínquos horizontes onde habita a incerteza e governa o desconhecido, e vier abater-se sobre as urbes, tornando monocromáticas as paisagens, negras as almas e cinzentas as vidas? Que medievas reações terão as gentes, acossadas na sua acomodação e indiferença, se subitamente obrigadas a transmudar suas vidas remetendo-se ao abrigo das sombrias casas, perante a superlativa e inverosímil ameaça?
Esvaziar-se-ão as ruas, transformadas em desertos de alcatrão pejados de veículos abandonados, por onde passam fugazes e cabisbaixos apenas aqueles que nela se aventuram por força das obrigações e das inevitabilidades? Despovoar-se-ão as vilas e as cidades? Tomará o silêncio o lugar das vozes e das gargalhadas, e escutar-se-á apenas o seu som, que julgávamos inexistir por nunca o havermos escutado?
Assomarão uma e outra vez às janelas, ou aos postigos, rostos fugidios e espectrais, como que sopesando a cada momento a espessura daquelas inusitadas circunstâncias para, logo depois, o som dos ferrolhos que se correm tornarem a mergulhar cada um no seu cárcere voluntário, adivinhando-se o tempo lento que passa dentro daquelas paredes onde gente incrédula se resguarda do invisível e do desconhecido?
Se o medo vier, que velhos demónios invocaremos para o justificar? Que soturnos pensamentos aflorarão na mente de cada um de nós? Que lancinante dor se virá instalar perante o receio de um beijo ou de um abraço de um filho, de um pai? Quão lúgubres se tornarão as nossas vidas tocadas pelo afiado estilete do medo que, fino, mergulhará nas nossas fragilidades?
E se o medo vier e não partir, se ousar entranhar-se nas nossas vidas, restando-nos apenas esperar por uma qualquer milagrosa circunstância que o devolva aos devónicos tempos de onde pareça ter saído?
E se, na sua silente e traiçoeira presença, o medo for o futuro? Será que se instalará o temor de não sermos capazes do vencer?
Será que teremos a ousadia de o olharmos de frente, para que possamos poder ver de novo
as cores do crepúsculo no seu rutilante esplendor?...
E se o medo vier?

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João Manuel Chambel Gonçalves Pedro - Montijo

2º Prémio - 2020

É quando ouço os teus passos pesados a subir as escadas, que o medo começa a deslizar dentro de mim - no sangue das minhas veias -, insidioso, como um animal doméstico que me habita os silêncios e desperta com a tua chegada. Já passaste o primeiro andar, tiras as chaves do bolso que vens a agitar enquanto sobes o último lanço, e nesse metálico tilintar, quase alegre, reconheço a campainha do meu medo, ou o alarme do meu terror - não sei bem. Espero-te. Pela última vez, olho tudo em redor e certifico-me: o jantar está pronto e quente, a casa brilha, orgulhosa do perfume da sua limpeza, e na jarra de cristal, as flores sorriem-me, num verde saciado pela água transparente. Está tudo em ordem - respiro fundo, muito fundo - o medo, veloz, corre-me por dentro.

Chegaste. Os teus passos param à porta, a chave roda suavemente na fechadura. O medo é agora um bicho alado dentro do meu peito, uma ave aflita roçando as asas às cegas nas paredes do meu coração. Presa ao chão, aliso as pregas do vestido, alinho um fio fugidio no meu cabelo entrançado, verifico a subtileza do perfume que me ofereceste, na pele dos meus pulsos. Entras, fechas a porta e ficas parado a olhar-me, tão alto, tão belo como há trinta e dois anos, quando te disse "Sim" no altar, vestida de branco e de sonhos. Não dizes nada e eu sei que será como das outras vezes, como de todas as vezes: primeiro a bofetada, quando eu menos a esperar; depois virão os cabelos arrancados aos puxões, a seguir os socos no rosto, a cabeça batida brutalmente contra parede, finalmente os pontapés - nos rins, na barriga, nas costelas -, quando o meu corpo desistente estiver tombado de lado, como um navio naufragado.

Pousas a pasta e aproximas-te para o beijo. O teu sorriso é quase terno, apertas-me sensualmente a garganta enquanto procuras o medo dentro de mim. No meu olhar, consegues reencontrá-lo e reconhecê-lo: o medo é agora um peixe enorme, viscoso, nadando em círculos no mar dos meus olhos - esse medo traiçoeiro e pérfido que me domina, me cala e me sufoca, me impede de gritar, de fugir ou de me defender. Sim, esse medo carrasco mais forte do que eu, que permitiu que me partisses costelas e dedos e dentes, que autorizou que matasses a pontapé o nosso filho, dentro do meu ventre, e que consente que eu continue a ser tua - para sempre, até que a morte nos separe.

Beijas-me com doçura e sentas-te para jantar. Não dizes nada, enquanto eu te sirvo o ensopado de borrego. Do outro lado da mesa, vejo-te comer com apetite, vejo-te esvaziar copo atrás de copo, vejo-te abrir outra garrafa de vinho. O medo é agora um touro, um cavalo, uma besta que escouceia dentro da minha cabeça. Perguntas-me qualquer coisa a que não sei responder, gritas alto, cada vez mais alto, dás um murro na mesa, que faz tombar o copo vazio. Engulo em seco, o meu corpo treme, e o medo que me habita antecipa o gosto que a minha boca terá daqui a pouco: sémen, sangue, suor e lágrimas. 

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Ana Paula Braga Morais Mateus - Póvoa de Varzim


1º Prémio - 2020

                                              

COTIDIANO NO MORRO DA PIPOCA

Silvou por cima da minha cabeça e fez um buraco na parede do bar de mais ou menos dois centímetros de diâmetro. Instintivamente atirei-me ao chão, mesmo sabendo que, se ouvi o estampido, aquele gesto era desnecessário.

Alagado em suores, sem saber se do calor excessivo ou de uma resposta à taquicardia e confusão mental.

Quando me dispus a sair do bar, ouvi uma saraivada de balas vindo da parte baixa do morro, com certeza disparos da polícia pacificadora, que, por medo talvez, dispara para todos os lados tentando intimidar e, por vezes, ceifando vidas inocentes com balas perdidas.

- João ontem caiu vítima de fogo amigo. – disse a travesti Roberta, que estava estatelada no chão ao meu lado, segurando no meu braço, como se eu pudesse salvá-la de alguma coisa.

O António, cheio de coragem, fechou a porta de metal do seu bar, como se ela pudesse parar algum projétil balístico. Ele veio juntar-se a nós com uma garrafa de cachaça e depois de dar duas enormes talagadas, passou-a para nós.

- Por conta da casa. – disse.

Não me fiz de rogado e depois entreguei-a à Roberta, que, sem perder o fôlego, ingeriu quase a metade da garrafa, dando um sonoro arroto. De seguida caiu num pranto convulsivo, com voz grossa de barítono.

- Saiu o homem de dentro de si? – perguntei-lhe para desanuviar. Mas desviei o olhar da sua figura quando a vi toda urinada, não querendo aumentar o seu constrangimento.

- Abre essa porta portuga senão vou metralhar tudo. – disse Tião Cachorro querendo esconder-se da polícia.

O António depressa abriu a porta, mesmo na hora em que o Tião foi atingido e caiu morto para dentro do bar.

Agora, quando fecho os olhos, só vejo as partículas do cérebro do Tião na cara toda sarapintada do António.

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José Eugénio Borges de Almeida - Póvoa de Lanhoso