Produzes cerca de mil e quinhentas metades de ser humano por segundo e agora quatrocentas milhões delas estão prestes a entrar na parte final do caminho de saída. A situação é corriqueira, mas hoje merece atenção porque pela primeira vez existe uma metade esperando do lado de fora. Não foi fácil armar isso. Bilhões de anos de evolução moldaram cada detalhe de vossos corpos para que pudessem se atrair e executar os movimentos de uma dança bem precisa; tivestes de vencer a repressão, a timidez, a falta de experiência e os obstáculos práticos; dentro do corpo dela as metades esperaram por treze anos para começar a descer, uma a uma, mês a mês, até que esta se disponibilizasse para este momento; dentro de teu corpo as metades maturaram por sessenta e quatro dias, viajaram por seis metros de epidídimo e canal deferente, se banharam em fluidos seminais, foram guiadas pela dança a se posicionar onde estão agora, quase, quase, quase saindo; e o longo drama vai ter resolução na próxima fração de segundo porque não tens mais como fugir da escolha. Tiras ou não? Os olhos dela estão aflitos, virando, quase fechando, quase desistindo e tu te alegras com o quanto ela se esforça para te manter no campo de visão, tu que nunca imaginaste ser capaz de provocar algo como o que vês agora, a não caber no corpo, a transbordar como se fosse suor, a sair com a voz, com os espasmos, com o gesto de te apertar e te arranhar na cintura, a se mostrar interminável mas que absurdamente queres terminar como nada quiseste na vida, não por causa do final mas por causa do caminho, um passeio pelo paraíso, um olimpo prometido pela biologia com hormônios e sinapses e neurotransmissores, um júbilo tão violento que não mereceria maiores considerações se o ser humano não fosse tão complicado, porque no fundo sabes o que fazer, ou melhor, o que não fazer, não sejas estúpido, este é um risco a não se correr, o pavor que tens do que pode acontecer!, mas, ai, luta injusta!, a convicção não encontra espaço no puro e tenso prazer da mente atual, a resistência precisa agir como clandestina, lá do subconsciente, se fazer presente como vaga hesitação e por fim ato reflexo de movimento para trás quando o líquido começa a avançar pelo caminho final, movimento sensato mas inútil porque tua companheira esboça com o indicador e o polegar da mão esquerda que segura o seio direito um gesto de pinça a apertar o bico e por causa disso perdes o controle, empurras bem fundo e decides ser merecedor deste êxtase ao qual agora não mais renunciarias mesmo que o firmamento começasse a desabar por cima de ti. Afonsa, tempestade adorável em forma de criança, vai nascer ainda este ano no primeiro dia da primavera.
3 de dezembro de 2021
1º Prémio - 2021
Produzes cerca de mil e quinhentas metades de ser humano por segundo e agora quatrocentas milhões delas estão prestes a entrar na parte final do caminho de saída. A situação é corriqueira, mas hoje merece atenção porque pela primeira vez existe uma metade esperando do lado de fora. Não foi fácil armar isso. Bilhões de anos de evolução moldaram cada detalhe de vossos corpos para que pudessem se atrair e executar os movimentos de uma dança bem precisa; tivestes de vencer a repressão, a timidez, a falta de experiência e os obstáculos práticos; dentro do corpo dela as metades esperaram por treze anos para começar a descer, uma a uma, mês a mês, até que esta se disponibilizasse para este momento; dentro de teu corpo as metades maturaram por sessenta e quatro dias, viajaram por seis metros de epidídimo e canal deferente, se banharam em fluidos seminais, foram guiadas pela dança a se posicionar onde estão agora, quase, quase, quase saindo; e o longo drama vai ter resolução na próxima fração de segundo porque não tens mais como fugir da escolha. Tiras ou não? Os olhos dela estão aflitos, virando, quase fechando, quase desistindo e tu te alegras com o quanto ela se esforça para te manter no campo de visão, tu que nunca imaginaste ser capaz de provocar algo como o que vês agora, a não caber no corpo, a transbordar como se fosse suor, a sair com a voz, com os espasmos, com o gesto de te apertar e te arranhar na cintura, a se mostrar interminável mas que absurdamente queres terminar como nada quiseste na vida, não por causa do final mas por causa do caminho, um passeio pelo paraíso, um olimpo prometido pela biologia com hormônios e sinapses e neurotransmissores, um júbilo tão violento que não mereceria maiores considerações se o ser humano não fosse tão complicado, porque no fundo sabes o que fazer, ou melhor, o que não fazer, não sejas estúpido, este é um risco a não se correr, o pavor que tens do que pode acontecer!, mas, ai, luta injusta!, a convicção não encontra espaço no puro e tenso prazer da mente atual, a resistência precisa agir como clandestina, lá do subconsciente, se fazer presente como vaga hesitação e por fim ato reflexo de movimento para trás quando o líquido começa a avançar pelo caminho final, movimento sensato mas inútil porque tua companheira esboça com o indicador e o polegar da mão esquerda que segura o seio direito um gesto de pinça a apertar o bico e por causa disso perdes o controle, empurras bem fundo e decides ser merecedor deste êxtase ao qual agora não mais renunciarias mesmo que o firmamento começasse a desabar por cima de ti. Afonsa, tempestade adorável em forma de criança, vai nascer ainda este ano no primeiro dia da primavera.
2º Prémio - 2021
Primeiro, num ato irreflexivo, apertou a mão contra a barriga, essa que albergava o seu pequeno Tiago de 8 meses. Logo, deixou o livro no sofá, aberto pela metade, levantou-se e ligou ao seu marido. Jorge, que em menos de 20 minutos, suado e preocupado, chegou a casa, encontrou a sua mulher muito quieta, pálida, com os olhos brilhantes de lágrimas que teimavam em não brotar e as calças manchadas de sangue. Inquieto pelo que via e lutando contra o instinto de abraçar a sua mulher e afirmar, sem garantias, “vai correr tudo bem”, acompanhou-a ao hospital, submergido num tenso ambiente de silêncio quase fúnebre.
Maria, com as mãos apoiadas na barriga numa tentativa de proteger esse ser por quem desprendia um amor inexplicável e que temia não chegar a conhecer, foi atendida de urgência e encaminhada ao bloco operatório. Em menos de 15 minutos, o cordão que a unia ao seu filho, num vínculo não só físico, mas também sentimental, tinha sido cortado. Pelas suas veias corriam várias drogas; umas para as dores da cirurgia, outras para a ansiedade do momento e outras que a mantinham entorpecida, inconsciente de tudo o que estava a acontecer à sua volta. Infelizmente para Maria, e para tantas outras mulheres, ninguém teve a bondade de inventar um remédio que curasse o coração partido de uma mãe, que nunca chegaria a sê-lo.
Nesse pesadelo efémero, onde os fragmentos das memórias misturavam-se e condensavam-se no que poderia ter sido um segundo ou uma eternidade, passariam várias horas até ser consciente de que o seu filho não sobrevivera ao descolamento da placenta.
Era uma quarta-feira, como tantas outras antes, quando descobriu que o amor de mãe dói, que a perda de um filho pode ser real e injusta e, soluçando adormecida, compreendeu que a sua vida nunca mais seria a mesma. Imaginou, ainda, que desde esse lugar sonhado observava uma etérea noite repleta de estrelas distantes e, qual Atlas, entendeu o intolerável castigo de carregar o peso do mundo aos ombros. Suplicou, devaneando, que o firmamento cedesse, que o céu lhe caísse em cima e lhe aliviasse essa pressão que acolhia no seu peito e que a sufocava lentamente.
Despertou a chorar. Essa dor, a de uma mãe com o coração despedaçado, prosseguia, viva e ardente; e o livro continuava imóvel em cima do sofá, aberto pela metade, tal como o deixara no sonho. Fechou o livro cujo final nunca chegaria a ler e notou como se movia o seu pequeno Tiago. Pousou a mão na barriga como um cumprimento, sorriu; o céu não caíra.
3º Prémio - 2021
No dia em que morreu a minha mãe, decidi que queria ser escritora. A minha mãe nunca aprendera a soletrar mais do que o seu próprio nome, mas contava muitas histórias da sua meninice, da meninice dos seus pais, e da minha também, do que eu não tinha como lembrar.
- Era uma vez, uma menina que... - começava a contar, invariavelmente. A menina que regava feijões, a menina que brincava na fonte, a menina que queria um cão, a menina que ia ao lagar, a menina que não queria crescer.
Na escola, os meus colegas sonhavam com as personagens das telenovelas brasileiras, com vistosas atrizes e corajosos galãs, enquanto a minha imaginação era alimentada pelas histórias do pequeno universo que era aquela vila onde morávamos, as suas pessoas, os seus lugares - sempre tão melhores, por terem como narradora alguém tão especial.
Depois, ganhei o gosto pela leitura: jornais, revistas, os novos sinais de trânsito que um dia semearam na praça. Passava a camioneta dos livros, e lá ia eu. Pedia para me deixarem tantos quantos as regras permitissem, o senhor da camioneta dizia dois, mas às vezes até deixava três. Ainda assim...
- Era uma vez, uma menina que se fez à vida. Fugiu para a cidade e por lá ficou - quase ouço a minha mãe narrar, do jeito como narrava décadas antes.
Não decidi ser escritora como decidem os escritores a sério, quase desde o berço. Apesar do amor aos livros, a idade adulta trouxe responsabilidades, pessoas e atividades diferentes. Tive outras profissões, bastantes e variadas. Hospedeira, secretária, dona de um café. Esposa, mãe, avó.
Mas, no dia em que a minha mãe morreu, decidi ser escritora. É meu desejo deixar em papel todas as histórias que foram contadas e as que estão por contar.
Um dia destes, alcancei o grande objetivo: terminei o meu primeiro livro. Poderia acontecer qualquer coisa, uma revolução ou um apocalipse. Se o céu me caísse em cima, eu pegaria na minha obra e rogaria a Deus: aqui tendes o testemunho desta humilde existência. Mesmo se o céu me caísse em cima, uma parte de mim já não se perdia com a morte do corpo. As palavras. E a minha mãe.
27 de setembro de 2021
Regulamento do Prémio Literário Hernâni Cidade 2021
Podem concorrer a este prémio todas as pessoas que o desejem, desde que aceitem e cumpram o disposto neste regulamento.
2º
Na edição de 2021 a modalidade é: Texto narrativo
«Mais tarde, já na altura dos 18 anos, uma doença teimosamente prolongada que me teve nos arredores da tuberculose, para lá me levou em busca da saúde que o aroma saudável dos pinheiros e o ar lavado da altitude, na verdade, me restituíram; e quando regressei do cativeiro na Alemanha, por lá passei umas férias grandes, todo entregue à preparação para a actividade universitária que ia iniciar.»
CIDADE, Hernâni - A serra d'Ossa e o seu convento
in: Boletim da Junta de Província do Alto Alentejo, Évora, 1959
Tema: E se o céu me caísse em cima...
3º
Cada participante só poderá concorrer com um único trabalho.
4º
O trabalho não deverá exceder 1 página e será enviado em quatro exemplares. Papel de formato A4, dactilografado, com espaço e meio de entrelinhamento, caracteres de tamanho 12, letra Times New Roman.
5º
O trabalho será subscrito com um pseudónimo e far-se-á acompanhar de um envelope fechado com a indicação exterior do pseudónimo e idade do concorrente. Esse envelope conterá obrigatoriamente no seu interior a identificação do concorrente: nome completo, idade, morada com indicação do código postal e número telefónico para eventual contacto.
6º
O trabalho poderá ser entregue:
a) Em mão na Biblioteca Municipal de Redondo
b) Pelo correio para:
Biblioteca Municipal de Redondo
Prémio Literário Hernâni Cidade 2021
Rua D. Arnilda e Eliezer Kamenezky, 43
7170-062 REDONDO
c) por email para premioliterariohernanicidade@gmail.com desde que:
1. seja enviado em anexo
2. o título do trabalho seja o mesmo que o nome do anexo
3. venha assinado com pseudónimo
4. em segundo anexo no mesmo email seja enviada a identificação do concorrente
5. cumpra as restantes cláusulas do regulamento
7º
O prazo de receção dos trabalhos termina a 29 de Outubro de 2021, findo o qual se procederá à sua apreciação e classificação por um Júri de quatro elementos de reconhecida idoneidade, aos quais será vedada a participação no concurso, e de cuja decisão não haverá recurso.
8º
Serão atribuídos
a) Três prémios: 1º, 2º e 3º, a que correspondem, respetivamente, as importâncias de 750, 375 e 250 Euros.
b) Três prémios Infantojuvenil dos 14 aos 17 anos
c) Menções honrosas a outros trabalhos que se distingam, em número a definir pelo Júri.
d) Diplomas de Participação a todos os concorrentes.
9º
O Júri poderá não atribuir qualquer dos prémios desde que considere haver falta de qualidade nos trabalhos apresentados.
10º
Os concorrentes premiados serão avisados dos resultados do concurso, sendo os prémios entregues em cerimónia pública a realizar no dia 4 de Dezembro de 2021, pelas 15 horas, no auditório do Centro Cultural de Redondo.
11º
A entidade organizadora reserva-se o direito de utilizar os trabalhos recebidos, quer expondo-os publicamente, quer publicando-os na imprensa nacional ou regional, ou ainda proceder à sua encenação ou representação em tempo oportuno.
Organização
Município de Redondo
1 de fevereiro de 2021
Menção Honrosa - 2020
Menção Honrosa - 2020
Menção Honrosa - 2020
Controle.
Sentou-se
ao meu lado, tocando-me delicadamente.
Fingi
ignorá-lo, tornando-me senhora de minhas emoções.
Acercou-se.
Preocupação
ampliada.
Algum
controle restante.
Mais
tempo, menos racionalidade.
Como
resistir?
Era
eu pensando ou obedecendo aos seus comandos?
Andei
de um lado a outro em busca de alívio.
Ele
me seguia e se fortalecia
Eu
combalia e o sentia agir sobre mim.
Tornara-me
sua presa e ele brincava comigo de maneira cruel.
Minhas
lágrimas o divertiam e o alimentavam.
Já
dentro de mim, fez meu corpo sentir debilidade.
O
telefone tocou e aquela voz botou fim às suas perversidades.
Alguma
coisa dele, porém, ainda pula em meu peito.
_
Susana Pereira Franco Salimson - Brasil
Menção Honrosa - 2020
Menção Honrosa - 2020
29 de janeiro de 2021
Menção Honrosa - 2020
_
Liliana Valente Cruz - Forte da Casa
Menção Honrosa - 2020
Menção Honrosa - 2020
O medo é um sentimento
Que vem connosco ao nascer
Pode torna-se um tormento
Que não passa com o tempo
E dura até morrer.
O medo tem dois sentidos
Que devemos de entender
É um que livra dos perigos
E nos deixa protegidos
E outro que nos faz sofrer
Por medo ficamos arrepiados
E o pânico restringe a liberdade
O temor deixa-nos paralisados
Com ele dormimos acordados
No leito onde mora a ansiedade.
O medo pode nos atormentar
Porque ele nunca tem opositor
Mas apesar de nos amedrontar
Ainda o podemos superar
Nos braços do nosso amor.
Mas quem disser não ter medo
Está mentindo para alguém
Pois todos nós sentimos medo
Nem que seja em segredo
Dos medos que a vida tem.
A lei do medo é um guia
Que não nos pode faltar
Se não ai de nós o que seria
Tudo fazia o que queria
Sem ninguém para castigar.
Mas há aquele medo que persiste
E de todos o que nos bate mais forte
É um terror a que ninguém resiste
É tão cruel que nos deixa triste
Esse medo é sempre o medo da morte.
Felícia Festas - Hortinhas, Évora
Menção Honrosa - 2020
Eloange Bittencourt Emediato - Brasília
Menção Honrosa - 2020
3º Prémio - 2020
Se um dia o medo...
2º Prémio - 2020
É quando ouço os teus passos pesados a subir as escadas, que o medo começa a deslizar dentro de mim - no sangue das minhas veias -, insidioso, como um animal doméstico que me habita os silêncios e desperta com a tua chegada. Já passaste o primeiro andar, tiras as chaves do bolso que vens a agitar enquanto sobes o último lanço, e nesse metálico tilintar, quase alegre, reconheço a campainha do meu medo, ou o alarme do meu terror - não sei bem. Espero-te. Pela última vez, olho tudo em redor e certifico-me: o jantar está pronto e quente, a casa brilha, orgulhosa do perfume da sua limpeza, e na jarra de cristal, as flores sorriem-me, num verde saciado pela água transparente. Está tudo em ordem - respiro fundo, muito fundo - o medo, veloz, corre-me por dentro.
Chegaste. Os teus passos param à porta, a chave roda suavemente na fechadura. O medo é agora um bicho alado dentro do meu peito, uma ave aflita roçando as asas às cegas nas paredes do meu coração. Presa ao chão, aliso as pregas do vestido, alinho um fio fugidio no meu cabelo entrançado, verifico a subtileza do perfume que me ofereceste, na pele dos meus pulsos. Entras, fechas a porta e ficas parado a olhar-me, tão alto, tão belo como há trinta e dois anos, quando te disse "Sim" no altar, vestida de branco e de sonhos. Não dizes nada e eu sei que será como das outras vezes, como de todas as vezes: primeiro a bofetada, quando eu menos a esperar; depois virão os cabelos arrancados aos puxões, a seguir os socos no rosto, a cabeça batida brutalmente contra parede, finalmente os pontapés - nos rins, na barriga, nas costelas -, quando o meu corpo desistente estiver tombado de lado, como um navio naufragado.
Pousas a pasta e aproximas-te para o beijo. O teu sorriso é quase terno, apertas-me sensualmente a garganta enquanto procuras o medo dentro de mim. No meu olhar, consegues reencontrá-lo e reconhecê-lo: o medo é agora um peixe enorme, viscoso, nadando em círculos no mar dos meus olhos - esse medo traiçoeiro e pérfido que me domina, me cala e me sufoca, me impede de gritar, de fugir ou de me defender. Sim, esse medo carrasco mais forte do que eu, que permitiu que me partisses costelas e dedos e dentes, que autorizou que matasses a pontapé o nosso filho, dentro do meu ventre, e que consente que eu continue a ser tua - para sempre, até que a morte nos separe.
Beijas-me com doçura e sentas-te para jantar. Não dizes nada, enquanto eu te sirvo o ensopado de borrego. Do outro lado da mesa, vejo-te comer com apetite, vejo-te esvaziar copo atrás de copo, vejo-te abrir outra garrafa de vinho. O medo é agora um touro, um cavalo, uma besta que escouceia dentro da minha cabeça. Perguntas-me qualquer coisa a que não sei responder, gritas alto, cada vez mais alto, dás um murro na mesa, que faz tombar o copo vazio. Engulo em seco, o meu corpo treme, e o medo que me habita antecipa o gosto que a minha boca terá daqui a pouco: sémen, sangue, suor e lágrimas.
_
Ana Paula Braga Morais Mateus - Póvoa de Varzim
1º Prémio - 2020
Silvou por cima da minha cabeça e fez um buraco na parede do bar de mais ou menos dois centímetros de diâmetro. Instintivamente atirei-me ao chão, mesmo sabendo que, se ouvi o estampido, aquele gesto era desnecessário.
Alagado em suores, sem saber se do calor excessivo ou de uma resposta à taquicardia e confusão mental.
Quando me dispus a sair do bar, ouvi uma saraivada de balas vindo da parte baixa do morro, com certeza disparos da polícia pacificadora, que, por medo talvez, dispara para todos os lados tentando intimidar e, por vezes, ceifando vidas inocentes com balas perdidas.
- João ontem caiu vítima de fogo amigo. – disse a travesti Roberta, que estava estatelada no chão ao meu lado, segurando no meu braço, como se eu pudesse salvá-la de alguma coisa.
O António, cheio de coragem, fechou a porta de metal do seu bar, como se ela pudesse parar algum projétil balístico. Ele veio juntar-se a nós com uma garrafa de cachaça e depois de dar duas enormes talagadas, passou-a para nós.
- Por conta da casa. – disse.
Não me fiz de rogado e depois entreguei-a à Roberta, que, sem perder o fôlego, ingeriu quase a metade da garrafa, dando um sonoro arroto. De seguida caiu num pranto convulsivo, com voz grossa de barítono.
- Saiu o homem de dentro de si? – perguntei-lhe para desanuviar. Mas desviei o olhar da sua figura quando a vi toda urinada, não querendo aumentar o seu constrangimento.
- Abre essa porta portuga senão vou metralhar tudo. – disse Tião Cachorro querendo esconder-se da polícia.
O António depressa abriu a porta, mesmo na hora em que o Tião foi atingido e caiu morto para dentro do bar.
Agora, quando fecho os olhos, só vejo as partículas do cérebro do Tião na cara toda sarapintada do António.
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José Eugénio Borges de Almeida - Póvoa de Lanhoso