1 de fevereiro de 2021

Menção Honrosa - 2020

O medo

Do autofalante a voz estridente e poderosa: fiquem em casa!
E o mundo lá fora tomado por um bicho horrendo ulcerado de pústulas que nos cerca e ameaça, visível no espelho embaciado das almas em retraído alvoroço.
O sol nunca foi mais brilhante, contudo. As praias entregues ao doce som das suas ondas, sós e mais belas do que nunca. E os mortos sobem nas tabelas coloridas à escala planetária em números que sibilam, cabisbaixos. E nós a encolher nesse caminho estreito, de ameaça em ameaça e, assim encolhidos, espiamos com olhos vorazes essa curva que sobe e não para. 
No horizonte, cresce e torna-se visível a barbárie. Sinal agudo em crescimento contínuo nascido no ventre em sobressalto e fechado connosco nesse lastro que nos aperta. É o absurdo que reina e, ao seu lado, todas as coisas esmorecem chamadas agora por estranhos nomes entre seringas e máscaras e gel desinfetante.
E tudo por culpa nossa, dizem. E pedimos aos deuses que nos devolvam o que era nosso, mas os contos e as fábulas enterrados à força nos sítios onde nada cresce ganharam arestas e faces cortantes, mesmo a calhar para entendimentos obtusos ligados por muitas falas e em retificação constante, porque os números descem um pouco, para logo subir desgovernadamente, arrastando consigo milhões de olhos temerosos, suspensos dessas linhas e dos magmas que somos.
Fiquem em casa! Sim, fechámo-nos obedientemente em casa num silêncio turvo, desconfiado e consentido, capazes de nada, porque são muitas as vozes, quase sempre chegadas de lugares distantes, suspensas por perguntas que ninguém sabe: alfabetos ainda desconhecidos, assombros balbuciantes acabados de nascer. Abrupto e negro o seu reflexo nas nossas salas onde, exangues, escorremos debruçados às janelas com vista para o estrondo das vidas embaladas e levadas em macas silenciosas. Mesmo assim, fazem-se listas intermináveis de desejos em lugares paradisíacos num futuro em queda livre. 
Fiquem em casa! E acenamos com as mãos aflitas. Acudam! temos as nossas musas dentro de águas subterrâneas e os nossos melhores sonhos pararam de sorrir para os dias agora velados de pano escuro. Acudam! E atiramos os olhos vazados para longe, levados ao acaso pelo grito feroz e livre das gaivotas. Os medos ficaram.
E nada será como dantes, repetem todas as coisas que falam.

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Maria Clara Vieira de Andrade - Portimão


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