1 de fevereiro de 2021

Menção Honrosa - 2020

O MEDO

Medo: nome de nascença singelo. Órfão de sobrenome porque nem o pai, nem a mãe quiseram que se lhe conhecesse a ascendência. Nasceu num dia escuro e gélido, durante o qual, conta-se, não houve à superfície da terra um único gesto de amor. Apátrida e sem família, vagueia, desde então, como um ladrão usurpador de sonhos e de futuro. À minha vida, chegou antes de eu ser parida. Antes até de ser concebida. Meus pais deram-lhe abrigo ao adiar a minha vinda. Temiam que padecesse da mesma doença da primeira filha. Quando, finalmente, ousaram sonhar-me, nasci e escapei à sombra da temida enfermidade. Mas o medo, ferido no seu orgulho por não ter levado a melhor, jurou que haveria de rondar-me. 
Durante quatro décadas de uma existência cheia de afetos, conquistas e alegrias, mas também de trabalho em excesso e esquecimento de mim, o medo vigiou, discretamente, a minha casa: medo de errar, medo de desapontar, medo de dizer não, medo de não estar à altura das exigências… Convenhamos: o seu modus operandi não é lá muito criativo! Nem mesmo o medo de ser contaminado, tão em voga nos tempos de pandemia que correm, revela grande originalidade. 
Um dia, porém, o medo armou-se em valente, arrombou-me a porta e apresentou-se, ufano, de relatório médico na mão: cancro de mama. Um buraco no estômago, um tremor no corpo, um nó na garganta, as lágrimas e a ausência de chão. Mil perguntas. E a crença avassaladora de que ele, o medo, era gigante, poderoso e implacável. 
Mas não era. Para surpresa minha, também dessa vez ele perdeu. O amor agigantou-se na minha vida, em torrente abundante e curativa de presenças, palavras, ajudas, hospitalidade, delicadezas… e o medo teve de se retirar. Medo e amor não coexistem. 
Obstinado, porém, não deixou de rondar. Na verdade, fui eu que consenti, na franja dos meus dias, a dúvida do “e se?”, essa brecha por onde ele sempre entra e começa a minar-nos a fé, a afastar-nos do amor. Novamente gigante, repetiu a façanha, e ainda com mais vigor, esfregou-me na cara, no corpo e na vida uma recidiva. 
Vivo, pois, arrancada, mais uma vez, ao meu quotidiano. Confrontada com a vulnerabilidade e a morte. E eis que me descubro estranhamente calma. Surpreendentemente lúcida. Como se estivesse a romper as águas uterinas da minha imanência e fizesse, agora, o meu próprio parto, nascendo a cada dia que passa, para a inteireza do momento presente, para o “aqui e agora”. Hoje, só por hoje, apenas o presente. E se pergunto “Onde estás agora, medo?”, parece-me que está sentado aqui ao lado, talvez ao meu colo, a ser embalado como nunca foi por ninguém. A aprender a estar só no momento presente, sem pressa de ir usurpar sonhos e futuro a alguém.

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Paula Cristina Direito Rabaça - Manteigas

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