18 de outubro de 2011

2011 - 1º PRÉMIO

LAÇOS

Uma velha mesa poeirenta no centro de uma sala vazia. Ali esquecido, um jornal com notícias de outrora repousa em cima de um sofá igualmente velho, igualmente poeirento. A lareira de pedra impõe-se, austera, neste espaço que respira instantaneamente, além da poeira do tempo, a nostalgia de um passado que agora se mascara de ilusão de presente.






O corredor vazio engana os sentidos parecendo maior do que é na realidade. Lá ao fundo, uma porta entreaberta liberta pensamentos distantes e memórias perdidas. Memórias inscritas em cada recanto desta casa e que se vão libertando, uma a uma, da vil lei do esquecimento e começam a ganhar forma, como se fossem pequenos fantasmas tímidos que por aqui deambulam ansiando por se revelar.






O abrir da janela, deste que foi em tempos o meu refúgio de ideias e palco de aventuras imaginadas, deixa entrar, com os primeiros raios de sol da manhã, o despertar de uma nova consciência.




Lá fora, a rua também vazia, de gente e de vida, parece adormecida e alheia ao meu olhar e à minha presença, como se eu fosse agora uma mera transeunte, apenas de passagem. Uma estranha sem rosto e sem história. Mas a minha história também já se escreveu aqui. Num ontem distante, esta rua que agora percorro, gritava as histórias de todos os que aqui se fizeram gente.






Em cada casa habitavam histórias diferentes. O burburinho da manhã desvanecia-se à medida que o dia avançava apenas para ser substituído pelo burburinho da tarde, quando as gentes voltavam do campo, ao final do dia de trabalho e a vila se voltava a encher de alma. Todos os dias eram iguais sendo a rotina apenas quebrada por uma ou outra cara desconhecida que vinha até cá para contemplar a beleza do castelo que há alguns séculos foi plantado no cimo desta colina, sentinela atento, cujo olhar penetrante se perde pela paisagem em redor. O velho sino da torre do relógio, agora silenciado pelo desgaste do tempo, ainda se impunha, fazendo-se ouvir em cada recanto destas muralhas de pedra.






E os cheiros. Recordo agora cada cheiro, cada aroma intenso que por entre estes becos e ruelas escondidos ajudaram a construir as histórias da minha infância. Os cheiros que chegavam e partiam com cada estação do ano como os turistas, os tais de cara desconhecida que cá vinham de tempos em tempos para também eles respirarem bocadinhos da nossa História. A intensidade do aroma da terra transformado pelas primeiras chuvas, o cheiro da lenha a arder vivamente na lareira cá de casa, esta lareira de pedra de onde o calor há muito se extinguiu. O perfume suave das rosas do quintal da vizinha e das flores de cores diversas que, à chegada da Primavera, pintavam os campos em tons de arco-íris e que brotavam aleatoriamente aqui e ali fazendo as delícias dos olhares mais atentos. O cheirinho adocicado dos bolinhos de canela que a minha avó fazia todos os anos durante a época da Páscoa e do pão fresco, acabadinho de sair do forno, que desde sempre me lembro de ser feito na padaria da vila, situada lá em baixo no vale, no meio desta melancólica paisagem alentejana.






Dentro do limite das muralhas a vida parecia imune a qualquer tipo de mudança. E mesmo lá em baixo, no vale, nada mudava radicalmente. As pessoas, as coisas, os lugares pareciam sempre os mesmos. Até mesmo hoje, passados dez anos desde o dia em que disse adeus a esta terra onde me fiz, também eu, gente, tudo parece igual. Ainda reconheço, por detrás das linhas traçadas pelo senhor tempo, esse escritor de histórias e pintor de vidas, os traços familiares nos rostos que outrora fizeram, de uma forma ou de outra, parte da minha história. A escola primária, a minha escola primária, agora remodelada, ainda exibe o mesmo espaço onde em tempos brinquei aos piratas e princesas, cenário dos primeiros amores e desamores de uma jovem vida. A igreja onde a minha avó me levava pela mão todas as tardes de domingo para ir à catequese só abre agora para receber meia dúzia de fiéis que, por força da devoção ou do hábito, ainda cumprem os deveres de bons cristãos.






Mas o momento mais marcante destes domingos de catequese era o caminho de regresso a casa porque a paisagem, essa, nunca se apresentava da mesma maneira. O percurso era feito debaixo de um céu multicolor, umas vezes em tons de rosa e púrpura, outras de um azul celeste e pinceladas de branco como se o mundo tivesse acabado de nascer. À medida que ia deixando o vale em direcção à colina, a vila tornava-se cada vez mais pequena, como que perdida na imensidão da paisagem, qual ilha disposta em alto mar.






Aquela paisagem que no inverno se cobria de um véu misterioso e fazia desaparecer o castelo, o nosso castelo, o meu castelo, e que no verão se tornava ainda mais intensa, quase sufocante.






Lá do alto esta paisagem que se vislumbrava, que ainda se vislumbra, era sempre um quadro distinto, multicolor, mutável…vivo. Foi com ela que criei laços que definiram aquilo que fui ontem e o que sou hoje. Os mesmos laços que me ligam a esta terra com a certeza de que são suficientemente fortes para resistir à efemeridade do tempo. A certeza de que estas paredes de cal, estas muralhas de pedra, estas ruas agora vazias de gente, aquela vila plantada no vale que cá do alto vislumbro com ternura, esta paisagem saudosa que sobre mim exerce fascínio e me prende a respiração, estarão sempre aqui para contar a minha história porque também eu nelas estou inscrita.






Aqui me perdi e voltei a encontrar vezes sem conta. Aqui, onde cresci. Aqui, onde aprendi a ser. Aqui, onde vivi. Aqui!






Nesta paisagem de amores impossíveis e histórias por contar. Esta paisagem que inspirou a minha infância.






CARLA PATRÍCIA PIRES MARTINS






(Évoramonte)

2011 - 2º PRÉMIO

SONHOS FLORIDOS

Carrego um amontoado de anos sobre as costas. São quase cem. Há lembranças que se desfazem nos declives da minha memória. Há outras, muito antigas, que permanecem vivas, como se tivessem nascido neste preciso momento.




Nasci nesta terra maravilhosa. Não digo o nome. Fica para descoberta do prezado leitor. Passei aqui a minha infância e guardo religiosamente no meu coração todas as inspirações que esta paisagem exerceu e ainda exerce sobre mim.




Depois de muitos anos de ausência, voltei a este cantinho do meu Portugal. Os sonhos, os meus sonhos, porque em toda a parte se pode sonhar, começaram a florir num bailado de recordações repletas de magia, onde a idade se perde nos recônditos mais íntimos da minha vontade de viver, para poder contar aos meus netos e bisnetos o quanto tive de belo nesta natureza ímpar.




Vejo-me novamente a saltar por penhascos e árvores; a chapinhar nos pegos das ribeiras; a subir as antas que guardam nos seios milenares sonhos que floriram e outros que ficaram só em botão; a atirar pedras aos pássaros com uma fisga feita com o elástico de uma liga que roubei à minha mãe. Eram aos milhares as aves que esvoaçavam nas encostas da serra. Eu não sabia, ninguém sabia o mal que fazíamos, quando atirávamos sobre as lindas avezitas. Os piscos, as felosas, as toutinegras, os gaios e tantas outras aves, eram aos milhares formando nuvens no céu do céu e no céu da minha meninice. Eu percorria vários quilómetros por dia, em busca da descoberta. E descobri a paisagem que envolve o tempo do meu tempo, onde prevalecem os retratos, nunca tirados, mas onde vejo a minha infância nítida e transparente, como era a água daquele tempo.



Depois, eu descia e vinha sentar-me à sombra duma frondosa azinheira, para almoçar com o meu pai e a minha mãe. Era quase sempre um pedaço de pão com umas falhas de toucinho e azeitonas. O pão era feito pela minha mãe e tinha sabor a sonhos floridos. A água estava numa infusa de barro para permanecer mais fresca. O tosco cocharro de cortiça, por onde bebíamos era, naquela altura, para mim, uma valiosa obra de arte.




Logo que acabavam de comer, lá iam os meus pais ceifar. As espigas, no seu farfalhar, falavam e cantavam. Pareciam gente... e eu ouvia, ouvia, os seus melódicos e dolentes cantares, preparando-se para poderem dar à luz o pão que mitigaria os desejos de tantos estômagos. As papoilas, de um vermelho não muito rubro, corriam ao desvario quando a brisa era mais intensa. O que mais me intrigava era que ficavam sempre no mesmo lugar. Parecia magia. Ali tudo era mágico! Até o pôr-do-sol exercia uma força poderosa sobre mim, criança de cinco ou seis anos. Estive em vários países, mas nunca vi um poente tão fascinante como este da minha terra. O crepúsculo benzia com os seus soberbos sombreados as copas das sobreiras e das azinheiras, num adeus ao dia que se ia deitar com as estrelas, na cama da lua, para voltar novamente, passadas algumas horas, com o sol no seu bailado de reflexos.




Eu só ia à vila de tempos a tempos. Às vezes lá ia com o meu pai, quando ele precisava de comprar umas botas de sola de pneu. Eu não usava nem botas nem sapatos, mas corria e saltava por todo o lado. Uma vez calcei as botas do meu pai e achei que aquilo me atrapalhava muito e era difícil correr, com aquela geringonça nos pés, para apanhar uma lagartixa ou outro bicharoco.




A minha avó, já muito idosa, com uma grande corcunda nas costas, que a fazia andar toda enrolada, passava os dias a fazer flores de papel, para as grandes festas. As flores eram tão bonitas que se assemelhavam às papoilas que corriam com o vento, mas que ficavam no mesmo lugar. Outras flores faziam lembrar os grandes girassóis que seguiam religiosamente o Sol no seu dolente andar. Eram flores tão lindas feitas de papel, que enchiam alcofas e alcofas. Ali estavam os meus sonhos floridos, numa paisagem curta mas distinta, onde a história da minha terra é saboreada por quem vê, com os olhos do espírito, que as tradições são a alma de povos e gerações.




Nunca pensei voltar a ver as festas da flor. Não sei se posso chamar a este encanto uma paisagem, porque, na realidade, eu sei o que é uma paisagem. Na minha infância eu vivi e vi a mais bela paisagem ou paisagens, que me marcaram juntamente com as festas da flor, mas eu não sabia o que era. Era apenas a minha terra semeada de sonhos, que mais tarde se transformaram em cravos floridos.




Hoje voltei a ter os meus cinco, seis e sete anos e o mundo de outrora voltou à minha mente. As lágrimas marejaram-me os olhos, como que a vendar o presente para ver e reviver o passado.



A vila parece um mar de flores! Até aquela senhora, tão idosa como eu, me fez lembrar a minha avó... com as suas alcofas cheias de flores de papel. As janelas parecem molduras de onde pendem cachos de rosas silvestres, dálias, hortênsias, malmequeres, papoilas, girassóis e grandes cravos vermelhos, que tombam nas ruas e sorriem para quem passa. É preciso saber compreender os sorrisos das flores. Eu sei. Um homem não deixa de ser homem por gostar de flores e ser sensível a elas.




Ao longe, vislumbro os imensos terrenos caiados de pérola pelo restolho, que forma uma toalha matizada pelos raios solares, estendida numa grande mesa, onde as aves, as aves da minha infância comem os grãos que ficaram caídos.




Vejo as encostas da serra com os seus penedos. Oiço o correr da ribeira. Tenho na boca o sabor do pão que a minha mãe fazia e brinco com os caroços das azeitonas que comia e me sabiam a mel.




Nestas festas da flor, olho o meu bisneto, que tem seis anos, e vejo nele a paisagem que marcou a minha infância, nos seus sonhos floridos.









MARIA DA GLÓRIA DUARTE MARREIROS JOSÉ






(Portimão)

2011 - 3º PRÉMIO

O CANTO DAS CEREJAS

Tac…Tac… Caíam na manta relvada do chão macio. Uma a uma, redondas, cintilantes na sua capa encarnada. A gravidade não fazia o trabalho sozinho. A vara da tia Carmelinda era a força impulsionadora.



Eram de facto cerejas e, ainda hoje, recordo o canto ecoado na mente da criança franzina. Pés descalços, confortáveis na frescura do piso. Permanece-me entranhado nas narinas o perfume das flores e o aroma desse fruto delicioso. Os meus olhos ainda avistam o verde da paisagem. Quando adormeço, os pássaros embalam-me os sonhos.



De saias compridas, quase a raspar o chão, socos ruidosos e avental à cinta, desfilava uma velhinha, numa azáfama de mulher atarefada. Ora transportava uma bacia de onde pendiam trapos, preparados para serem esticados na corda junto ao rego de água. Ora rapava a erva, de foucinha afiada, acumulando, em cerca de 10 minutos, o lanche dos coelhos cinzentos e orelhas descaídas.



Toc…Toc… Os socos batiam no chão e ecoava a presença da doce velhinha a quem docilmente eu chamava de avó. O doce estava sempre presente. No sorriso dela e no meu, quando gulosamente saboreava o caramelo desbotado que ela guardava delicadamente para me oferecer.





Às Segundas-feiras, à saída da escola, a ordem cumpria-se: ir ter com a avó, caso a mãe ainda não tivesse chegado da feira. E era a escola que de facto preenchia a minha vida…



Nos meandros encarreirados, saltitava feliz. A escola avistava-se branca a meio do percurso. O cheiro a papel camuflava o mofo das carteiras perfuradas pelo bicho – da – madeira.



Clementina denominava a agridoce professora, artista experiente em pincelar com ensinamentos as telas vazias de muitos meninos. Como aprendiza dedicada, fui preenchendo as tardes da minha infância. Entre contas e ditados, o horário não dispensava a hora do recreio, quase sempre guarnecido com pão e marmelada.



Num desses dias de escola, não foi apenas mais um… Saímos em direcção ao Castro. Registei na memória, esse evento como o único passeio que fiz com os meus colegas da Escola Primária. Já nesses tempos se falava de uma gruta, onde mouros guardaram tesouros. Onde sons estranhos davam ecos a medos e receios, transformando o local num dos mais misteriosos do Concelho.



As gotas de suor salpicavam-nos o rosto, humedecendo a vontade de chegar ao cimo do monte. Aí, a vista surgia maravilhosa, compensando o esforço no trilho percorrido. Pedaços brancos de algodão afiguravam nuvens, pendentes num azul celestial. Infinito, num horizonte pintado de verde, com elevações a contornar uma pequena povoação. Na zona central, as casas surgiam mais aglomeradas, dispersando-se um pouco em direcção à periferia.



- Senhora Professora, a gruta é naquela direcção? Vamos lá espreitar? – perguntou um dos miúdos e todos fomos ver. Dirigimo-nos em grupo para o sítio que o miúdo apontava, enquanto este simulava truques usados na defesa contra um mouro imaginário.



O termo gruta não seria o mais apropriado para descrever aqueles dois penedos. Lado a lado, separados apenas por uma giesta, ornamentada com flores amarelas. Num arranjo floral oferecido, pela natureza, em agradecimento à integridade do local.



Em tempo de férias, às Segundas, acompanhava a minha mãe nas idas à feira. Em pleno centro da povoação instalavam-se inúmeras barracas. Várias fragrâncias suavizavam o ar, assinalando os diferentes pontos de venda. Era possível comprar pão, fruta, peixe, roupa, artigos em ouro e outras surpresas. A maior de todas era oferecida pela vendedora que circulava no seio da multidão, carregando uma bilha revestida de cortiça. Era uma figura alegórica, de pés descalços, saia rodada, avental atado à cinta e lenço na cabeça.



-Quem quer limonada fresquinha? – apregoava enquanto servia água num copo de vidro, partilhado por todos os sequiosos interessados em pagar uma moedinha.



Nessa altura, havia muito tempo… Tempo para sorrir, para correr, para brincar, para ler ou escrever e mesmo para contemplar a paisagem que sempre inspirou a minha vida...



Às vezes pergunto o que procuro neste amontoado de fumo que uso para substituir essa paisagem. Não sei bem o que faço nestas filas intermináveis ao som de buzinas que me ensurdecem e agitam a mente. Qual a razão de não ter encontrado naquela paisagem de sonho, o sonho da minha?



Talvez as cerejas não tenham cantado o suficiente para me enfeitiçar…








ANA MARIA DA SILVA CUNHA





(Braga)

2011 - PRÉMIO JUVENTUDE

A PAISAGEM QUE INSPIROU A MINHA INFÂNCIA






Tenho bem presente na minha memória as altas montanhas dos Pirenéus, donas de um verde espantoso e de uma beleza extraordinária. Fascinava-me passar pela estrada nacional que as rompia. A estrada serpenteava até lá acima… até ao ponto onde as nuvens ficavam abaixo de nós. E era tão lindo poder olhar pela janela e ver as nuvens brancas e esfarrapadas.






Nunca achei que as nuvens se parecessem com algodão. Essa perspectiva é para quem vê de baixo. Lá em cima pareciam mais como fumo branco e inerte. Não se assemelhavam a algo sólido, mas sim a algo com que se sonha e os limites rasgados e lacerados denunciam que não é consistente, que não é palpável. Muitas vezes sonhei, acordada e durante o sono, com a sensação de as atravessar… Como seria cair através delas? Conseguiria respirar? Ficaria molhada? Ou seria como nos desenhos animados e ficaria confortavelmente deitada em cima das nuvens?






As montanhas possuíam em si uma beleza que me coagia a viajar, a querer conhecer todos os que habitavam a cordilheira, a não poluir, a defender a Mãe Natureza. Compelia-me a querer mostrar a todas as pessoas aqueles picos verdejantes que se fundiam na imensidão do céu azul claro e, olhando para baixo, apenas se via o branco das nuvens.






Os Pirenéus fizeram-me querer ser exploradora e partir de catana na mão até conhecer toda a natureza que habitava aquele lugar. Seria uma aventura maior do que qualquer acampamento de escuteiros… estaria ao nível das aventuras que os navegadores portugueses ultrapassaram no tempo dos descobrimentos. Na minha perspectiva de criança, seria o auge da minha vida.






A imagem mais vívida que tenho destas montanhas foi quando aos quatro anos olhei pela janela e as vi. Não tinha sido a primeira vez que olhei para elas mas foi sem dúvida a primeira vez que as vi. O meu mano estava ao meu lado. A emoção de poder partilhar aquela imensidão, aquela sensação de ser pequenina num mundo demasiado grande, com o meu irmão marcou-me. Marca-me.






Mas quando se tem um irmão mais velho com quem nos damos extraordinariamente bem, as paisagens que partilhamos e guardamos na memória escondem momentos, sentimentos, palavras, acções. E os Pirenéus não são excepção. Enquanto olhava para os cumes altos que se avizinhavam, o meu irmão começou a lutar comigo (na brincadeira) e partimos a minha chupeta. Não fiquei chateada. Não naquele momento. Não naquela paisagem. Quis largar a chupeta nesse momento, afinal já era crescida e a calma que aquelas montanhas transpiravam tinha o efeito de eu não sentir medo de nunca mais ver a "chucha". Mas o meu pai, com medo que eu não o deixasse dormir nessa noite, comprou-me uma nova.






As altas montanhas dos Pirenéus sempre exerceram em mim um fascínio muito peculiar: ligam-nos ao resto da Europa. Sem elas seriamos uma ilha luso-ibérica, como na história de Saramago. Menina habituada a viajar pela europa por terra, a conhecer os países e as suas gentes; é natural que o atravessar destas montanhas representasse para mim o caminho "para o outro lado", para o desconhecido, para a aventura. Sempre achei que os espanhóis e Espanha eram demasiado parecidos connosco para se poder dizer que se estava no estrangeiro. Após aquelas enormes montanhas avistava-se terra mais verde, mais vento, mais frio, mais pessoas de cortes de cabelo e roupas estranhas, pessoas mais brancas e línguas esquisitas impossíveis de entender. Era quase um novo mundo, sempre com algo novo para mostrar.






Adorei Helsínquia, capital da Finlândia. Recordo-me perfeitamente da Praça do Senado. A Catedral de Helsínquia erguia-se acima dos edifícios circundantes no meio de uma praça assaltada por turistas maioritariamente espanhóis. Foi o primeiro edifício que vi do género: com as suas colunas, estátuas e frontão triangular era semelhante aos edifícios históricos do sul da Europa, mas as suas abóbadas e pináculos davam-lhe um ar russo. Era linda no seu tom branco e telhado esverdeado. Lembro-me de achar que as escadas que davam acesso à Catedral eram infinitas… Mas quando somos pequenos tudo parece maior e mais distante, talvez seja por isso que tudo no mundo nos parece tão belo.






A Praça do Senado ficou embutida na minha memória por toda a sua beleza. No entanto, esta paisagem inspirou a minha infância de um modo que nunca ninguém iria prever. No meio daquela praça, daquela cidade, naquele país, senti que pertencia. Ali as pessoas eram tão brancas como eu e eu sentia que era ali que eu deveria ter nascido. Embora estivesse num país frio e nunca tivesse vestido tanta roupa de uma vez, sentia-me em casa.






Foi a memória do sentimento de pertença que ali senti que me fez enfrentar e não me deixar abalar pelo gozo dos meus colegas sobre o meu tom de pele. Sempre que a inevitável "brincadeira" que me magoava sucedia, eu transportava-me para Helsínquia e relembrava tudo novamente: o tom de pele das pessoas, a sua alegria, o meu sentimento de pertença, o mercado que vendia coisas engraçadíssimas, os jovens a irem para a escola de skate, patins ou bicicleta…






Helsínquia inspirou-me a fazer planos para morar ou estudar lá na esperança de voltar a ter aquele sentimento que só encontro na minha própria casa. Talvez um dia revisite Helsínquia e, quem sabe, concretizar um desses sonhos de pequena…






Outra paisagem que inspirou a minha infância foram as ruas de Tânger, Marrocos. Para mim, as ruas mais estreitas do mundo, onde se reza para não se cruzar com ninguém porque é impossível que passem duas pessoas ao mesmo tempo. As lojas são pouco mais profundas que montras e vendem tudo. Há ténis da Nike empilhados por todas as paredes. Noutra loja há lenços e malas Hermès e doutras marcas. Noutra loja fraldas e tudo o que faz falta para o quotidiano. Outra é uma espécie de mercearia. Ao lado há uma loja que vende brincos de prata e móveis de madeiras requintadas. São todas seguidas e uma só rua consegue albergar as mais diversas lojas com os mais diversos produtos.






Lembro-me de uma dessas ruas apinhadas de produtos desembocar numa espantosa praça enorme com relva, onde várias pessoas estavam sentadas a conversar ou a ler. Era ladeada de palmeiras gigantescas e bancos de jardim. No centro havia uma fonte igual a tantas outras, mas que tinha um brilho especial debaixo daquele calor avassalador.






Foi então que parei e, enquanto comia o pão tradicional, observei as pessoas e a sua fantástica multiculturalidade. Vi pessoas com trajes tradicionais parecidos às 7 saias da Nazaré a conviverem naturalmente com pessoas de calções, t-shirts e ténis (que não eram turistas), ao lado de pessoas vestidas com burkas enormes a falarem com pessoas em calças de ganga e camisa, havia também homens de fato e mulheres de saias rodadas a condizerem com lenços que lhes tapavam todo o cabelo. A moda como os europeus a vivem não é igual naquele local isolado que tive o prazer de encontrar. Os tons de pele das pessoas também eram de igual notoriedade: pessoas tão pretas como carvão, outras escuras como chocolate, outras pareciam douradas com a luz do sol e outras de um moreno invejável. Gostei do modo como o convívio entre modas e tons de pele tão diferentes parecia pacífico e natural.






Tânger é uma cidade diferente das que tinha conhecido até então e, apesar das discrepâncias monetárias visíveis, acho que os outros povos podiam aprender uma lição de tolerância em relação ao aspecto pessoal. Aquela paisagem fez-me tentar não julgar os outros pelo seu aspecto, quer fosse pela roupa, religião, tatuagens ou qualquer outra coisa que nos distinga enquanto pessoas.









Podia descrever muitas outras paisagens que inspiraram a minha infância, mas considerei que estas influenciaram-me em fazes diferentes do meu desenvolvimento e de forma diferente. Uma paisagem é algo mais profundo do que uma imagem. Só isso não chega. Uma paisagem revela-se na nossa memória quando precisamos de inspiração e aparece no nosso coração quando relembramos as pessoas que estavam ao nosso lado nesse momento. Às vezes é tudo o que precisamos.






ANA MARISA PALMEIRO GONÇALVES



(Redondo)

2011 - MENÇÃO HONROSA

REINO DE AQUÉM E ALÉM TERRAS DE REDONDO




As lembranças da infância não se apagam nunca. Ficam indelevelmente registadas ainda que possam repousar depositadas no mais profundo dos abismos da nossa memória aguardando pura e simplesmente que um qualquer acontecimento as faça emergir à superfície e se insinuem em todo o seu esplendor, ou não chegam nunca a desaparecer mantendo-se à tona sob a forma de cheiros, sabores, imagens, emoções ou sons com as quais vamos interagindo e dando e dando corpo ao nosso quotidiano. E há memórias a que conscientemente voltamos amiúde quando as circunstâncias e os contextos nos pedem que a elas regressemos. A memória dos espaços percorridos e vividos em criança é uma dessas memórias, a que volto frequentemente. No meu caso essa memória é a memória de um reino.




O meu reino ficava a meus pés na imensidão das vinhas, dos olivais e dos montados que, para lá do Campo do Calvário e da Praça de Touros, se estendiam ao longo da estrada para Évora até perder de vista, naquela planura onde no verão reverberavam ondas de calor que faziam tremeluzir os campos amarelecidos pelo restolho sob o bafo quente do estio e, nos meses mais frescos, se contemplava o vento penteando as searas e agitando os ramos do arvoredo num bailado infindável. O meu reino abarcava tudo em redor, emoldurado pela Serra d'Ossa, pela Boavista, pelos horizontes que se estendiam para os lados de Bencatel, de Terena, de Santa Susana, pelo recorte do casario branco da vila de Redondo no azul luminoso do céu. Lá estavam a Torre do Castelo, a muralha, as igrejas, a massa imponente dos silos da moagem, a adega...




Contemplava as minha terras lá do alto, de perto da igreja de S. Pedro, onde o meu trono ficava num palácio de cristas rochosas que aí afloravam da terra poeirenta sob os pinheiros mansos, e onde gostava de me sentar contemplando, nos amplos e desimpedidos horizontes, aquela que era verdadeiramente a minha terra, uma terra sem fronteiras nem limites. E aí sentado, deixava-me invadir pelos elementos que me rodeavam e alimentava dessa forma o meu espírito, sem o poder saber, para toda a vida.




Havia os sons. Os sons que me chegavam diluídos pela distância, e misturavam o restolhar do vento nos pastos secos e na ramagem das árvores, os ecos de chocalhos de animais no campo, o ruído da serração lá em baixo, o trinar dos pássaros na sua azáfama, a sinfonia de miríades de insectos revolteando nos ares, os gritos dos rapazes jogando à bola e as vozes estridentes das mulheres que ao final do dia chamavam os filhos pelas ruas da vila...




Havia as cores, sobretudo na primavera, quando múltiplos tapetes de flores campestres polvilhavam de branco, amarelo e violeta os tapetes verdes de ervas rasas que serviam de chão aos olivais e montados, em contraponto com a cor dourada das searas prenhes de sementes oscilando ao vento uns meses mais tarde, ou à cor fulva do barro da terra exposta quando fendida e revolta pelos arados dos tractores. Havia depois aquele azul do céu, único e imenso, feito de luz e trasparência, povoado aqui e ali por farrapos brancos de nuvens vagarosas empurradas pelo vento suão, que se iam transformando ao sabor da minha imaginação enquanto as contemplava deitado nas lajes quentes de granito que me serviam de mobília. E havia o cinzento plúmbeo que se instalava nos dias de trovoada, recortando ainda mais se possível o casario contra o céu, sobretudo quando os raios de sol incidiam ainda sobre a vila e pintavam de amarelo dourado as paredes brancas, enquanto a chuva não chegava tingindo inevitavelmente de cinza toda a paisagem em volta e derramando cortinas de água sobre os telhados luzidios, para depois escorrer generosa e transparente pelos beirados sobre o empedrado dos passeios...




Havia os cheiros. O cheiro acre do fumo negro elevando-se aqui e ali entre o casario vindo dos fornos que se acendiam nas olarias para que o fogo cumprisse a sua missão de completar, com a alquimia das altas temperaturas, o trabalho saído das rodas e das mãos dos oleiros, dispersando-se depois dolentemente na atmosfera enquanto fazia sombras fugidias nas paredes e telhados da vila. O cheiro a terra molhada, impregnado de restolho, que se levantava do chão quando as primeiras gotas de chuva se derramavam sobre as terras em redor, secas e ávidas de água, e que ainda hoje é a memória viva desses tempos quando se repete. E o cheiro a poejos que se insinuava naqueles ares e me era trazido pela brisa suave desde os campos mais abaixo onde pequenos regatos lhes afagavam as raízes...




Nesse local, de que me sentia dono e senhor, gostava de me perder no tempo, de estar sozinho dando largas à fantasia de reinar num território só para mim num local inexpugnável nas suas muralhas de pedra ocultas pela copa frondosa dos pinheiros. Absorvendo cada elemento de toda a paisagem em redor, desfrutando do prazer daquela solidão, gostava muitas vezes de quedar-me absorto nos meus pensamentos sobretudo à hora mágica do dia em que o sol se propunha render-se à noite e no céu se recortava a lâmina fina e brilhante da lua em quarto crescente, qual foice de luz riscando o astro, preparando-se para derramar daí a pouco, sob o céu polvilhado de estrelas, o seu manto diáfano de ténue luar que tingiria depois a terra com o seu halo azulado onde habitariam apenas vultos sombrios de sobreiros, e oliveiras, e rastos de pirilampos, e onde ecoaria o cantar sincopado e frenético das cigarras. Entre aqueles campos, aquele casario, aquelas gentes, deixava deambular a minha imaginação e contruía as histórias e as aventuras que nunca partilhei com ninguém, património da minha intimidade carregado pela força telúrica que emanava de toda aquela envolvência e que remanesce dentro de mim.




Talvez por isso, decerto por isso, a este meu reino regresso invariavelmente mesmo quando lá não estou e a despeito da distância que o tempo induz nas coisas da memória. É o meu reino onde ainda hoje faço poesia e escrevinho contos e romances, onde me recolho para meditar, para me conformar ou para me revoltar, umas vezes para rir e outras para chorar.




Porque esse reino está mesmo lá mesmo eu não estando, porque da infância me traz e me ficou, porque é neste reino que sinto as minhas raízes profunda e inabalavelmente agarradas à minha substância, porque sem um reino destes não seria afinal quem hoje eu sou.












JOÃO MANUEL CHAMBEL GONÇALVES PEDRO



(Montijo)

2011 - MENÇÃO HONROSA

UMA PAISAGEM, A MINHA MÃE




Pedem-me que fale de uma paisagem que tivesse inspirado a minha infância... Por mais que puxe pela cabeça, nenhuma me vem à memória. Nenhuma... a não ser a minha mãe. Pode uma mãe ser uma paisagem? A minha era. A minha às vezes era uma montanha, outras vezes um bosque. Umas vezes uma seara, outras um campo arado. Um lago, um mar. Tudo isso era a minha mãe. Por isso vou falar-vos da paisagem que era a minha mãe.



A minha mãe tinha sempre muito que fazer e ainda por cima era costureira. Era na época das festas e nos casamentos que ela se via a braços com mais trbalho. Tinha de acabar as roupas para o dia que lhe pediam e muitas vezes isso não acontecia e as pessoas zangavam-se com ela, mas acabava sempre tudo como deve ser. Ao pagarem, as pessoas achavam um bocado caro, porém não calculavam o trabalho despendido, os serões gastos a pedalar na sua Singer e os materiais necessários para confeccionar um vestido ou um par de calças. Apesar de tudo, vinha gente de muito longe encomendar-lhe roupa por medida e achavam-na muito boa costureira. Vivíamos numa aldeia distante de tudo e onde tudo à volta era paisagem. Mas eu acho que era a melhor costureira de Portugal. Eu acho mesmo que era a melhor do Mundo!



As mãos da minha mãe eram mágicas. Ela fazia tudo com elas. De um pano de fazenda, traçava uns riscos com giz ou com um pedaço de sabão azul, media aqui e media ali com a fita de costura, pregava uns alfinetes nos sítios certos, alinhavava em baixo e cosia em cima e estava um par de calças pronto na perfeição e o cliente com um sorriso nos lábios. Para um vestido complicado com muitos folhos e laços e lacinhos era a mesma coisa. À primeira prova batia tudo certo, quase nunca era preciso emendar fosse o que fosse e as pessoas ficavam contentes. Ela nunca fez um vestido de noiva, mas eu tenho a certeza que não teria problema nenhum em fazê-lo, assim com imensos follhos e imensas rendas e uma cauda muito comprida para arrastar pelo chão. Eu daria um braço - sim, daria um braço - em como uma princesa qualquer ficaria satisfeita se mandasse confeccionar à minha mãe o seu vestido de gala. Neste caso, teria era de trazer os tecidos e as rendas e os tules e o tafetá e as pérolas do seu país, porque devem ser materiais caríssimos para uma princesa.


A minha mãe era muito habilidosa e fazia coisas espantosas com as mãos. Além dos vestidos lindíssimos, com folhos, sem folhos, com balões, sem balões, com laços, sem laços, de Primavera e de Verão, além das calças e dos calções, das batas e das blusas, das saias e dos casacos, era ela que também costumava fazer grande parte dos enfeites para a nossa aldeia. Ela e a tesoura tinham uma relação muito estreita, de profundo entendimento. A tesura fazia parte da mão direita da minha mãe. Ela dobrava várias vezes o papel colorido e fazia fitas com recortes de estrelas e flores e inúmeras figuras geométricas de uma imaginação e efeito surpreendentes. As pessoas que as colavam com cola de farinha nos cordéis em ziguezague ao longo das ruas ficavam de boca aberta. E os balões? Os balões ficavam tão bonitos como cachos de glicínias. Digamos que ficavam a fazer parte da paisagem da nossa aldeia. Aqueles rendilhados entrecruzados de várias cores eram de um capricho e um fascínio que baralhavam a cabeça de qualquer pessoa e deixava-a a pensar: como é que isto se faz? Como é que alguém consegue fazer uma coisa assim? Às vezes penso que era uma pena ver aqueles balões deslumbrantes estragarem-se, pendurados ao vento ou à chuva, porque eram verdadeiras obras de arte que duravam poucos dias.



É: as mãos da minha mãe eram mágicas, faziam maravilhas. Ela e a tesoura faziam milagres e a tesoura tinha tanto uso que às vezes, em vez de cortar, mastigava. Era aí que entrava o amolador de tesouras, que de quando em quando passava pela nossa aldeia. Vagaroso, vinha na sua bicicleta, uma pasteleira ferrugenta com a caixa das mós atrás, e não amolava só tesouras e facas, também consertava chapéus de chuva e punha gatos nos alguidares de barro rachados. Ia tocando a sua flauta de Pã pelas ruas, para chamar a atenção do povo. O capador de porcos também tinha uma, mas não combinava nada com o seu tipo de ofício: uma vez vi-o capar um porco e logo a seguir comer os testículos do pobre animal, assados com sal e vinagre nas brasas. E o porco a ver, coitado!... O amola tesouras era mais romântico, apesar de me parecer tão velho quanto a minha avó. O som da sua flauta de Pã era muito singular, parecia que ondulava para a frente e depois regressava ao ponto de partida e ficava no ouvido como uma melodia do paraíso. Eu ía logo a correr e mandava-o parar, depois trazia-lhe a tesoura da minha mãe, que já não cortava mas, mastigava. O amolador já me conhecia desde muito miúdo e fazia-me brincadeiras do género: orelha, telha ou puxelha?... E eu baralhava-me sempre e dizia telha ou dizia puxelha, e ele puxava-me as orelhas para cima ou para a frente, respectivamente. Ou outra assim: de quem é esta cara?... Ele apontava para perto do meu nariz, eu devia responder que era dele, mas também me enganava sempre e respondia que era minha e então ele puxava-me o nariz, dizendo: se é tua, para que serve este marco aqui ao meio?...



O amola tesouras era muito divertido e muito simpático e até me tratava por Nico. Então Nico, já tens muitos ninhos? Ele sabia que eu gostava de pássaros e de ninhos. Olha, ontem vi um pica-pau; e tu, já viste um pica-pau? Coisas assim. Ele dizia que já tinha visto um cuco e eu não acreditava - não acreditava!... Então punha as mós a desandar e as lâminas da tesoura até faziam faíscas miudinhas. Um cuco?... Depois experimentava a tesoura num papel e depois experimentava a tesoura num pano, e dizia: perfeita, como nova. E dava-lhe cem escudos. Um cuco? Não acredito, era mais fácil ver aqui uma gaivota e estamos tão longe do mar. E ele: Nunca percas a esperança, Nico, nunca percas a esperança. Porque um uco e uma gaivota o que têm em comum são as asas e as asas levam-nos longe. Dava-me um apertão nas bochechas e ia-se embora a sorrir, empurrando a bicicleta ferrugenta, vagarosamente, e fazendo-se ouvir pela flauta de Pã. O som ia e vinha, subia e descia, parecia que ondulava, fazia parte daquela paisagem. O amolador, ele próprio, também era uma paisagem: olhando para ele, viam-se os quatro cantos do mundo. Um cuco? Não acredito...



Voltava com a tesoura afiada e a minha mãe nem precisava de a experimentar porque sabia que o amolador era de confiança. Ela ficava contente, porque uma costureira com uma tesoura que mastigava o pano era uma má costureira e ela e a tesoura afiada faziam maravilhas. Apenas ao domingo deixava a tesoura e a Singer em paz.



A minha mãe era a número um do universo. No meu livro de leitura havia uma lição que se chamava «Tu és linda, minha mãe!»* e contava a história de uma mãe que queimou as mãos para salvar o filho que dormia no berço. Ela não queria que o filho as visse, tão deformadas e cheias de cicatrizes estavam, mas o pequeno acaba por lhe dizer assim: «As tuas mãos são as mais belas do mundo!»



As mãos da minha mãe não tinham queimaduras nem deformações, apenas a pele engelhada, e frieiras e calos da tesoura e picadelas de agulha quano se esquecia de utilizar o dedal. Mas também as dela eram as mais belas do mundo. Eram mesmo as mais belas do mundo!



Melhor dizendo, a minha mãe era o mundo e cada mão tinha o tamanho de uma paisagem. Quando me pegava ao colo e, mais tarde, me abraçava, eu sentia-me uma árvore no meio dessa paisagem. Influenciou-me e julgo que dei, como árvore, os meus frutos.




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*Texto de António Botto, «Tu és linda, minha mãe!».







PAULO JOSÉ COELHO CARREIRA


(Batalha)