1 de fevereiro de 2021

Menção Honrosa - 2020

Português Suave

Perdi o medo de ter muito, mas mesmo muito medo.

Tinha medo do isolamento compulsivo num quarto tenebroso imposto no Hospital Psiquiátrico Magalhães Lemos, porque me prenderam como se fosse um criminoso. Agora tenho medo desse tipo de medo.

Medo, que virou miraculosamente coragem... coragem e tino, para não voltar a ter um esgotamento tão grande como o da crise de 2008. Para não voltar a ser atirado como um animal mal cheiroso para o canil municipal.

Era o medo de saltar de avião que nos punha, a nós paraquedistas, a correr para a porta do abismo.

O medo até pode ser bom aliado. Como diz o povo ao medricas: “...abre os olhos para a vida...” Porque quem vive no medo não vive.

Agora, só me resta ter mesmo medo que se acabe o tabaco no meio de uma noite mal dormida. Inquietação...Inquietação… Lá vem mais uma insónia. Alguém me arranja um Português Suave?

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Tiago Manuel de Figueiredo Marques - Porto

Menção Honrosa - 2020

O MEDO

Medo: nome de nascença singelo. Órfão de sobrenome porque nem o pai, nem a mãe quiseram que se lhe conhecesse a ascendência. Nasceu num dia escuro e gélido, durante o qual, conta-se, não houve à superfície da terra um único gesto de amor. Apátrida e sem família, vagueia, desde então, como um ladrão usurpador de sonhos e de futuro. À minha vida, chegou antes de eu ser parida. Antes até de ser concebida. Meus pais deram-lhe abrigo ao adiar a minha vinda. Temiam que padecesse da mesma doença da primeira filha. Quando, finalmente, ousaram sonhar-me, nasci e escapei à sombra da temida enfermidade. Mas o medo, ferido no seu orgulho por não ter levado a melhor, jurou que haveria de rondar-me. 
Durante quatro décadas de uma existência cheia de afetos, conquistas e alegrias, mas também de trabalho em excesso e esquecimento de mim, o medo vigiou, discretamente, a minha casa: medo de errar, medo de desapontar, medo de dizer não, medo de não estar à altura das exigências… Convenhamos: o seu modus operandi não é lá muito criativo! Nem mesmo o medo de ser contaminado, tão em voga nos tempos de pandemia que correm, revela grande originalidade. 
Um dia, porém, o medo armou-se em valente, arrombou-me a porta e apresentou-se, ufano, de relatório médico na mão: cancro de mama. Um buraco no estômago, um tremor no corpo, um nó na garganta, as lágrimas e a ausência de chão. Mil perguntas. E a crença avassaladora de que ele, o medo, era gigante, poderoso e implacável. 
Mas não era. Para surpresa minha, também dessa vez ele perdeu. O amor agigantou-se na minha vida, em torrente abundante e curativa de presenças, palavras, ajudas, hospitalidade, delicadezas… e o medo teve de se retirar. Medo e amor não coexistem. 
Obstinado, porém, não deixou de rondar. Na verdade, fui eu que consenti, na franja dos meus dias, a dúvida do “e se?”, essa brecha por onde ele sempre entra e começa a minar-nos a fé, a afastar-nos do amor. Novamente gigante, repetiu a façanha, e ainda com mais vigor, esfregou-me na cara, no corpo e na vida uma recidiva. 
Vivo, pois, arrancada, mais uma vez, ao meu quotidiano. Confrontada com a vulnerabilidade e a morte. E eis que me descubro estranhamente calma. Surpreendentemente lúcida. Como se estivesse a romper as águas uterinas da minha imanência e fizesse, agora, o meu próprio parto, nascendo a cada dia que passa, para a inteireza do momento presente, para o “aqui e agora”. Hoje, só por hoje, apenas o presente. E se pergunto “Onde estás agora, medo?”, parece-me que está sentado aqui ao lado, talvez ao meu colo, a ser embalado como nunca foi por ninguém. A aprender a estar só no momento presente, sem pressa de ir usurpar sonhos e futuro a alguém.

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Paula Cristina Direito Rabaça - Manteigas

Menção Honrosa - 2020

 

Controle.

Sentou-se ao meu lado, tocando-me delicadamente.

Fingi ignorá-lo, tornando-me senhora de minhas emoções.

Acercou-se.

Preocupação ampliada.

Algum controle restante.

Mais tempo, menos racionalidade.

Como resistir?

Era eu pensando ou obedecendo aos seus comandos?

Andei de um lado a outro em busca de alívio.

Ele me seguia e se fortalecia

Eu combalia e o sentia agir sobre mim.

Tornara-me sua presa e ele brincava comigo de maneira cruel.

Minhas lágrimas o divertiam e o alimentavam.

Já dentro de mim, fez meu corpo sentir debilidade.

O telefone tocou e aquela voz botou fim às suas perversidades.

Alguma coisa dele, porém, ainda pula em meu peito.

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Susana Pereira Franco Salimson - Brasil

 


Menção Honrosa - 2020

Uma menina presa na escuridão

    Um mar de sangue nas pernas da criança. No meio da cidade que por estes dias vê com os olhos feitos em lágrimas o verão a fazer as malas, eu presa no banco deste parque a ser fustigada pelo mesmo sentimento que há anos me queima as entranhas como se tivessem atirado um barril de combustível e um isqueiro para dentro de mim. Nem um pio, uma nódoa de eco no parque, apenas um túnel de soluços que sai de mim mesma a sufocar os estilhaços do meu choro enquanto a noite silenciosa olha-me condoída. Muitos anos envolta disto, a mão dele gorda e rugosa estendida no ar em direcção à minha cara e a voz trôpega de tanto bagaço com o mesmo tom ameaçador, 

    dou cabo de ti se contares a quem quer que seja,

    O medo continua me fazendo sorver a escuridão com o mesmo sofrimento com que os mortos devoram suas próprias unhas. Não consigo exumar-me desta cova, porque muitos anos envolta disto e a mão gorda e rugosa do meu pai estendida para mim; eu pequenota deitada na cama do quarto da nossa casa do Milreu com o sangue a descer-me pernas abaixo e o corpo todo a tremer e a desfazer-se em cacos de arrepios; muitos anos envolta disto e eu sem perceber que demónio entrou-lhe no corpo, apenas o bagaço a tilintar na voz 

    dou cabo de ti se contares a quem quer seja.

    O medo é como aquelas doenças maldosas que quando nos entram no corpo comem-nos silenciosamente órgão por órgão até apodrecermos. Desde que o meu pai fez aquilo comigo nunca consegui contar a ninguém o que aconteceu naquela noite fria e chuvosa. Aquele corpo pesado continua em cima do meu corpo nu; o sangue que apodrece comigo enquanto cresço continua descendo-me pelas pernas; a sujidade no meu corpo e a dor a queimarem-me mesmo depois de meu pai puxar as calças para cima e fechar a braguilha.

    Ninguém sabe, mas muita nuvem à minha volta e o medo continua a prender-me neste poço escuro. Muitos anos envolta disto. Quanto mais cresço sinto-me mais incapaz de sair deste casulo e contar a todo o mundo o que aconteceu. O medo sempre tomando partido da maldade; eu apodrecendo por dentro e a voz do meu pai sempre para mim 

    dou cabo de ti se contares a quem quer que seja.

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Miguel Luís José - Lisboa 

Menção Honrosa - 2020

O medo

Do autofalante a voz estridente e poderosa: fiquem em casa!
E o mundo lá fora tomado por um bicho horrendo ulcerado de pústulas que nos cerca e ameaça, visível no espelho embaciado das almas em retraído alvoroço.
O sol nunca foi mais brilhante, contudo. As praias entregues ao doce som das suas ondas, sós e mais belas do que nunca. E os mortos sobem nas tabelas coloridas à escala planetária em números que sibilam, cabisbaixos. E nós a encolher nesse caminho estreito, de ameaça em ameaça e, assim encolhidos, espiamos com olhos vorazes essa curva que sobe e não para. 
No horizonte, cresce e torna-se visível a barbárie. Sinal agudo em crescimento contínuo nascido no ventre em sobressalto e fechado connosco nesse lastro que nos aperta. É o absurdo que reina e, ao seu lado, todas as coisas esmorecem chamadas agora por estranhos nomes entre seringas e máscaras e gel desinfetante.
E tudo por culpa nossa, dizem. E pedimos aos deuses que nos devolvam o que era nosso, mas os contos e as fábulas enterrados à força nos sítios onde nada cresce ganharam arestas e faces cortantes, mesmo a calhar para entendimentos obtusos ligados por muitas falas e em retificação constante, porque os números descem um pouco, para logo subir desgovernadamente, arrastando consigo milhões de olhos temerosos, suspensos dessas linhas e dos magmas que somos.
Fiquem em casa! Sim, fechámo-nos obedientemente em casa num silêncio turvo, desconfiado e consentido, capazes de nada, porque são muitas as vozes, quase sempre chegadas de lugares distantes, suspensas por perguntas que ninguém sabe: alfabetos ainda desconhecidos, assombros balbuciantes acabados de nascer. Abrupto e negro o seu reflexo nas nossas salas onde, exangues, escorremos debruçados às janelas com vista para o estrondo das vidas embaladas e levadas em macas silenciosas. Mesmo assim, fazem-se listas intermináveis de desejos em lugares paradisíacos num futuro em queda livre. 
Fiquem em casa! E acenamos com as mãos aflitas. Acudam! temos as nossas musas dentro de águas subterrâneas e os nossos melhores sonhos pararam de sorrir para os dias agora velados de pano escuro. Acudam! E atiramos os olhos vazados para longe, levados ao acaso pelo grito feroz e livre das gaivotas. Os medos ficaram.
E nada será como dantes, repetem todas as coisas que falam.

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Maria Clara Vieira de Andrade - Portimão