1 de fevereiro de 2021

Menção Honrosa - 2020

Uma menina presa na escuridão

    Um mar de sangue nas pernas da criança. No meio da cidade que por estes dias vê com os olhos feitos em lágrimas o verão a fazer as malas, eu presa no banco deste parque a ser fustigada pelo mesmo sentimento que há anos me queima as entranhas como se tivessem atirado um barril de combustível e um isqueiro para dentro de mim. Nem um pio, uma nódoa de eco no parque, apenas um túnel de soluços que sai de mim mesma a sufocar os estilhaços do meu choro enquanto a noite silenciosa olha-me condoída. Muitos anos envolta disto, a mão dele gorda e rugosa estendida no ar em direcção à minha cara e a voz trôpega de tanto bagaço com o mesmo tom ameaçador, 

    dou cabo de ti se contares a quem quer que seja,

    O medo continua me fazendo sorver a escuridão com o mesmo sofrimento com que os mortos devoram suas próprias unhas. Não consigo exumar-me desta cova, porque muitos anos envolta disto e a mão gorda e rugosa do meu pai estendida para mim; eu pequenota deitada na cama do quarto da nossa casa do Milreu com o sangue a descer-me pernas abaixo e o corpo todo a tremer e a desfazer-se em cacos de arrepios; muitos anos envolta disto e eu sem perceber que demónio entrou-lhe no corpo, apenas o bagaço a tilintar na voz 

    dou cabo de ti se contares a quem quer seja.

    O medo é como aquelas doenças maldosas que quando nos entram no corpo comem-nos silenciosamente órgão por órgão até apodrecermos. Desde que o meu pai fez aquilo comigo nunca consegui contar a ninguém o que aconteceu naquela noite fria e chuvosa. Aquele corpo pesado continua em cima do meu corpo nu; o sangue que apodrece comigo enquanto cresço continua descendo-me pelas pernas; a sujidade no meu corpo e a dor a queimarem-me mesmo depois de meu pai puxar as calças para cima e fechar a braguilha.

    Ninguém sabe, mas muita nuvem à minha volta e o medo continua a prender-me neste poço escuro. Muitos anos envolta disto. Quanto mais cresço sinto-me mais incapaz de sair deste casulo e contar a todo o mundo o que aconteceu. O medo sempre tomando partido da maldade; eu apodrecendo por dentro e a voz do meu pai sempre para mim 

    dou cabo de ti se contares a quem quer que seja.

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Miguel Luís José - Lisboa 

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