O fim dos dias
Ao descer do autocarro, Clara olhou para o velho relógio de pulso e notou que, pela primeira vez em vários anos, seria a primeira pessoa a chegar a casa. Durante a hora de almoço na fábrica, recebeu a chamada telefónica que pôs fim ao seu segundo trabalho como empregada doméstica que durava há vinte anos. Do outro lado da linha, Júlia dizia-lhe que o contrato de venda da casa da mãe estava assinado e que iria voltar para a Suécia. Não iria precisar de mais nada da sua parte, os novos donos tinham ficado encantados com o estado de limpeza da casa e o último pagamento, com “uma gentileza”, iria ficar num envelope na Pastelaria Doce Mel. Clara, com o telemóvel numa mão e um garfo na outra, agitou a cabeça em conformidade, o que resultou num silêncio no telefone. Júlia sentiu aquela pausa desconfortável e acrescentou, antes de desligar: nunca se esqueça durante todos estes anos foi como se fosse da família. “Com certeza, menina. Tudo de bom” disse Clara e deixou a testa cair e repousar, por segundos, na mesa do refeitório. Sabia que aquela notícia ia chegar desde Abril, quando a matriarca viúva Emília teve um ataque cardíaco fulminante e Clara a encontrou no chão da sala de estar. Há duas décadas que, depois do turno diário na fábrica de roupa interior feminina, Clara trabalhava naquela casa, duas a quatro horas, conforme as tarefas que a patroa Emília tinha destinadas para si. Somando aos dois empregos, o tempo que passava em transportes públicos, nunca chegava a sua casa antes das dez da noite. Apesar do extremo cansaço que sentia, a hora tardia de chegada a casa diminuía a probabilidade de encontrar o seu marido ainda acordado. O que diminuía a probabilidade de ter que se submeter às suas perguntas bruscas e agressivas, o que diminuía a probabilidade de encontrar arranhões e nódoas negras em partes do corpo, ao acordar. Era no caminho da paragem de autocarro até à fechadura da sua casa, que a ansiedade e o medo que trazia no peito se transformavam em dois monstros gigantes que a acompanhavam de mão dada até à entrada de sua casa. Abrindo devagar a porta de entrada, a luz da sala estar acesa ou apagada dava escolha aos dois gigantes para entrarem, lado a lado, com Clara ou voltarem para o seu peito. Clara sabia que, a partir de agora, chegaria sempre mais cedo que o marido e que estaria dentro de casa, quando ele abrisse repentinamente a porta de entrada. Subiu as escadas do prédio em passos demorados e enquanto rodava a chave na porta percebeu que, enquanto estivesse naquela casa, os monstros teriam morada.
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Liliana Valente Cruz - Forte da Casa
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