COTIDIANO NO MORRO DA PIPOCA
Silvou por cima da minha cabeça e fez um buraco na parede do bar de mais ou menos dois centímetros de diâmetro. Instintivamente atirei-me ao chão, mesmo sabendo que, se ouvi o estampido, aquele gesto era desnecessário.
Alagado em suores, sem saber se do calor excessivo ou de uma resposta à taquicardia e confusão mental.
Quando me dispus a sair do bar, ouvi uma saraivada de balas vindo da parte baixa do morro, com certeza disparos da polícia pacificadora, que, por medo talvez, dispara para todos os lados tentando intimidar e, por vezes, ceifando vidas inocentes com balas perdidas.
- João ontem caiu vítima de fogo amigo. – disse a travesti Roberta, que estava estatelada no chão ao meu lado, segurando no meu braço, como se eu pudesse salvá-la de alguma coisa.
O António, cheio de coragem, fechou a porta de metal do seu bar, como se ela pudesse parar algum projétil balístico. Ele veio juntar-se a nós com uma garrafa de cachaça e depois de dar duas enormes talagadas, passou-a para nós.
- Por conta da casa. – disse.
Não me fiz de rogado e depois entreguei-a à Roberta, que, sem perder o fôlego, ingeriu quase a metade da garrafa, dando um sonoro arroto. De seguida caiu num pranto convulsivo, com voz grossa de barítono.
- Saiu o homem de dentro de si? – perguntei-lhe para desanuviar. Mas desviei o olhar da sua figura quando a vi toda urinada, não querendo aumentar o seu constrangimento.
- Abre essa porta portuga senão vou metralhar tudo. – disse Tião Cachorro querendo esconder-se da polícia.
O António depressa abriu a porta, mesmo na hora em que o Tião foi atingido e caiu morto para dentro do bar.
Agora, quando fecho os olhos, só vejo as partículas do cérebro do Tião na cara toda sarapintada do António.
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José Eugénio Borges de Almeida - Póvoa de Lanhoso
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