3 de dezembro de 2021

3º Prémio - 2021

A minha mãe

No dia em que morreu a minha mãe, decidi que queria ser escritora. A minha mãe nunca aprendera a soletrar mais do que o seu próprio nome, mas contava muitas histórias da sua meninice, da meninice dos seus pais, e da minha também, do que eu não tinha como lembrar. 

Eu não passava uma noite sem ouvir aqueles contos sem fadas, mas igualmente fantásticos. Antes de dormir, uma nova história. E outra. E outra. Até que a minha mãe esgotava o repertório e voltava ao início do rol, só que dessa vez a história ganhava mais outro detalhe, qualquer coisa que ela não teria dito antes, uma nova luz que surgia e tornava mais claros os contornos desse mundo meio real e, suspeito agora, meio inventado.

- Era uma vez, uma menina que... - começava a contar, invariavelmente. A menina que regava feijões, a menina que brincava na fonte, a menina que queria um cão, a menina que ia ao lagar, a menina que não queria crescer.

Na escola, os meus colegas sonhavam com as personagens das telenovelas brasileiras, com vistosas atrizes e corajosos galãs, enquanto a minha imaginação era alimentada pelas histórias do pequeno universo que era aquela vila onde morávamos, as suas pessoas, os seus lugares - sempre tão melhores, por terem como narradora alguém tão especial.

Depois, ganhei o gosto pela leitura: jornais, revistas, os novos sinais de trânsito que um dia semearam na praça. Passava a camioneta dos livros, e lá ia eu. Pedia para me deixarem tantos quantos as regras permitissem, o senhor da camioneta dizia dois, mas às vezes até deixava três. Ainda assim...

- Era uma vez, uma menina que se fez à vida. Fugiu para a cidade e por lá ficou - quase ouço a minha mãe narrar, do jeito como narrava décadas antes.

Não decidi ser escritora como decidem os escritores a sério, quase desde o berço. Apesar do amor aos livros, a idade adulta trouxe responsabilidades, pessoas e atividades diferentes. Tive outras profissões, bastantes e variadas. Hospedeira, secretária, dona de um café. Esposa, mãe, avó.

Mas, no dia em que a minha mãe morreu, decidi ser escritora. É meu desejo deixar em papel todas as histórias que foram contadas e as que estão por contar.

Um dia destes, alcancei o grande objetivo: terminei o meu primeiro livro. Poderia acontecer qualquer coisa, uma revolução ou um apocalipse. Se o céu me caísse em cima, eu pegaria na minha obra e rogaria a Deus: aqui tendes o testemunho desta humilde existência. Mesmo se o céu me caísse em cima, uma parte de mim já não se perdia com a morte do corpo. As palavras. E a minha mãe.


Beatriz Helena Villegas Canas Mendes
Vila Viçosa

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