3 de dezembro de 2021

1º Prémio - 2021

Porta de pérola

Produzes cerca de mil e quinhentas metades de ser humano por segundo e agora quatrocentas milhões delas estão prestes a entrar na parte final do caminho de saída. A situação é corriqueira, mas hoje merece atenção porque pela primeira vez existe uma metade esperando do lado de fora. Não foi fácil armar isso. Bilhões de anos de evolução moldaram cada detalhe de vossos corpos para que pudessem se atrair e executar os movimentos de uma dança bem precisa; tivestes de vencer a repressão, a timidez, a falta de experiência e os obstáculos práticos; dentro do corpo dela as metades esperaram por treze anos para começar a descer, uma a uma, mês a mês, até que esta se disponibilizasse para este momento; dentro de teu corpo as metades maturaram por sessenta e quatro dias, viajaram por seis metros de epidídimo e canal deferente, se banharam em fluidos seminais, foram guiadas pela dança a se posicionar onde estão agora, quase, quase, quase saindo; e o longo drama vai ter resolução na próxima fração de segundo porque não tens mais como fugir da escolha. Tiras ou não? Os olhos dela estão aflitos, virando, quase fechando, quase desistindo e tu te alegras com o quanto ela se esforça para te manter no campo de visão, tu que nunca imaginaste ser capaz de provocar algo como o que vês agora, a não caber no corpo, a transbordar como se fosse suor, a sair com a voz, com os espasmos, com o gesto de te apertar e te arranhar na cintura, a se mostrar interminável mas que absurdamente queres terminar como nada quiseste na vida, não por causa do final mas por causa do caminho, um passeio pelo paraíso, um olimpo prometido pela biologia com hormônios e sinapses e neurotransmissores, um júbilo tão violento que não mereceria maiores considerações se o ser humano não fosse tão complicado, porque no fundo sabes o que fazer, ou melhor, o que não fazer, não sejas estúpido, este é um risco a não se correr, o pavor que tens do que pode acontecer!, mas, ai, luta injusta!, a convicção não encontra espaço no puro e tenso prazer da mente atual, a resistência precisa agir como clandestina, lá do subconsciente, se fazer presente como vaga hesitação e por fim ato reflexo de movimento para trás quando o líquido começa a avançar pelo caminho final, movimento sensato mas inútil porque tua companheira esboça com o indicador e o polegar da mão esquerda que segura o seio direito um gesto de pinça a apertar o bico e por causa disso perdes o controle, empurras bem fundo e decides ser merecedor deste êxtase ao qual agora não mais renunciarias mesmo que o firmamento começasse a desabar por cima de ti. Afonsa, tempestade adorável em forma de criança, vai nascer ainda este ano no primeiro dia da primavera.


Afrânio de Melo Júnior
Brasil

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