20 de outubro de 2012

2012 - Prémio Especial Juventude

Cabe, porventura, à literatura uma função social?

Imagine um mundo sem emoções súbitas. Imagine um mundo onde, por já se saber tudo, não se pensa em nada. Imagine um mundo onde nada é novo. Imagine um mundo sem absurdo ou espectáculo. Imagine um mundo onde tudo é preto ou branco, sem existirem tons de cinzento pelo meio. Esse seria o mundo em que eu, o leitor e todos nós viveríamos se não existisse a literatura.

Só a literatura tem o poder de entreter, divertir ou angustiar enquanto ensina ou expõe situações novas e acontecimentos que obrigam a pensar. A literatura tem a capacidade única de fazer parar o tempo e marcar uma determinada época, sem no entanto se mostrar desatualizada com o passar dos anos. Sendo intemporal, é também a sua pluralidade que permite estimular as emoções, dificultando por vezes a distinção clara entre a mente e o coração, podendo ocorrer aqui uma fusão perfeita de sentimentos e racionalidade.

Para além de contribuir para um alargamento de conhecimento, a literatura entretém e diverte até as almas mais solitárias. Quem lê ou quem escreve nunca está só, mesmo que se encontre entre quatro paredes, sem nenhuma outra forma humana presente, além de si mesmo. Quem segura um livro nas suas mãos, segura o bem mais precioso que alguma vez poderia ter só para si. É ele que permite conhecer novos lugares, temas, realidades, situações, viajar pelo mundo fora e até por outros mundos sem ser necessário sair do sofá. A literatura tem assim o poder de contar uma história que enriquece cada um que a abraça e interpreta.

A literatura tem desde sempre inúmeras funções, que nem sempre são reconhecidas ou valorizadas por todos. Para além da sua função educativa ou lúdica, é inegável por tudo o que foi referido que a literatura tem também uma função social. Para além de fazer companhia e "aquecer" todos os corações que a acolhem, é ela que acompanha e, por vezes, vaticina a mudança e a evolução dos tempos. Agitadora de consciências, desperta até as mais difíceis e adormecidas. Insensível a diferenças e distinções, torna ainda igual o que muitas vezes é tido como diferente.

A literatura tem essencialmente o poder da mudança, tanto de opiniões, como de atitudes, já o afirmava Henry Thoreau, escritor norte-americano do séc. XIX, quando referiu que "muitos homens iniciaram uma nova vida a partir da leitura de um livro". Assim, partindo para um plano mais geral, subentende-se que a literatura tem indubitavelmente o poder de alterar ou até mesmo reformular sociedades, a fim de as melhorar, em nome da evolução natural, mesmo que esta ocorra quase sem nos darmos conta da sua progressão. De pequeno passo em pequeno passo, a mudança ocorre, essencialmente através da mutação de padrões, referências, modelos ou conceitos. Não obstante este poder, é importante notar que, apesar de estas mensagens chegarem a todos nós, não são imunes ao nosso julgamento. Desta forma, cada um de nós julga as mensagens e seleciona e aceita aquelas que mais se aproximam dos nossos pontos de vista ou comportamentos, agindo com base na reflexão e introspeção, capacidades que, no entanto, são também impulsionadas pela literatura. Quem escreve, torna público aquilo que por vezes é privado e abre o seu coração ao próximo, enquanto quem lê se predispõe a conhecer a história de outrem e, com isso, a enriquecer o seu coração e a sua mente, que passa a abranger um leque cada vez mais vasto de situações e ocorrências.

Mário Vargas Llosa, vencedor do Prémio Nobel da Literatura no ano de 2010 e escritor de excelência, também não ignorou a função social da literatura e o poder que ela exerce sobre cada um de nós quando afirmou que "a literatura não é algo que nos faça felizes, mas ajuda-nos a defendermo-nos da infelicidade", reforçando aqui mais uma vez a "companhia" que a literatura representa para quem se predispõe a recebê-la de braços abertos. De facto, um livro pode, por vezes, ser a única companhia de uma alma, mas nem por isso se torna menos importante ou valiosa que a de qualquer outro ser humano.

Assim, a literatura é rica em funções, mas é a sua função social a mais relevante. Desde sempre é indiscutível o papel que a literatura desempenha no âmbito social. Desperta e agita consciências, contribui para a formação e desenvolvimento de um espírito crítico saudável, capaz de refletir acerca das condutas assumidas por cada um e pelos seus semelhantes, estimula a sensibilidade e a imaginação, abre e apura mentalidades, contribui ativamente para o surgimento da mudança positiva, fornece valores, contrói o dilema coração-mente, fazendo com que frequentemente seja necessária uma fusão harmoniosa entre os dois para o entendimento perfeito de tudo o que é novo e vem através da literatura; no fundo, para além de manter a sociedade unida, mesmo nas suas diferenças, ainda a aperfeiçoa. É ao mesmo tempo um estandarte de liberdade, atuando como uma arma poderosa com efeitos imprevisíveis, frequentemente temidos por quem se encontra no poder, uma vez que é através dela que muitas vezes se levantam questões sobre as mais variadas crenças, ideologias e condutas sociais geralmente aceites pela maioria a população. Por tudo o que foi referido, entende-se que a literatura é acima de tudo uma arte com um poder invulgar. Mas é ainda muito mais do que tudo isto, e é isso que a torna tão especial e tão magnífica.

FILIPA RAQUEL NUNES PITEIRA
(Évora)

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