20 de outubro de 2012

2012 - 3º Prémio

O QUE ESPERAR DA ESCRITA VS. LEITURA?

Deve reconhecer-se à literatura função mais vasta (e, dir-se-á, mais nobre) do que a de simples entretenimento? É função da literatura influenciar quem dela frui, de forma que quem lê interpele e seja interpelado, num claro debate das ideias que ressaltem da leitura? Não será esse debate que, implicando, embora, empenhamento e mobilização, acaba por desembocar no maior dos gozos, porque partilhado e discutido? Não faltará quem, militantemente, negue à literatura qualquer interferência na sociedade. Como abundará quem defenda conceito absolutamente contrário. Poderá de tal dicotomia resultar consenso? E será importante o consenso? Será importante, ao menos, ter opinião formada após a leitura? A total ausência de reacção não geraria um vazio desmotivador a sugerir o abandono do exercício da mesma leitura?

Dificilmente algo na vida resulta completamente inconsequente. Mesmo que tal pareça, no imediato. Se, no caso em apreço, a leitura não provocar reacção, espanto, revolta, adesão, repulsa, algo assim, levará, inevitavelmente, ao tédio, ao fastio, ao afastamento. Ainda assim, uma atitude. Em última análise concluir-se-á estarmos perante algo que nada terá de literatura, apenas mero sequenciar de palavras, desprezível porque inócuo.

"Escrever é uma forma socialmente aceite de esquizofrenia" (Doctorow). Será? E a leitura? Será a "aceitação" da escrita, o seu uso, totalmente racional? Quem é mais ou menos louco ou, dizendo-o de forma menos agressiva, mais ou menos atreito a sentimentos incomuns gerados pela escrita? Onde entram as emoções no processo?

Sobram testemunhos sobre o sofrimento que é, tantas vezes, escrever. E o gozo, outras tantas. Ou as duas, em simultâneo. Nunca ouvi de alguém que escrever o deixe indiferente. Quem escreve (sobretudo no conceito de escrita mais válida, da que legitimamente pode chamar-se literatura) pode até inventar uma estória, mas há-de meter-lhe vida dentro. Não acredito na total ficção. Não acredito na escrita que não dói e (ou) não consola, na escrita que não agride e (ou) não acaricia. Acredito firmemente que a aparente invenção na escrita é, apenas, aparente. A escrita que interpela não inventa em absoluto. Reproduz, veste uma qualquer realidade com o fato que o autor talha. Mas o tecido já existia (muitas vezes em simples e curtos retalhos?) porventura com outra forma, com cores menos apelativas, menos provocatórias. Entre a calma criação e o quase (quase?) delírio o autor há-de estabelecer com o leitor uma interacção/conivência de função socialmente viva e consequente. A escrita há-de "mexer" com o leitor, há-de enleá-lo na sua malha, obviamente com diferentes graus de intensidade. O leitor há-de aderir ou repelir, numa atitude, em qualquer dos casos, de envolvimento. Inteiramente racional? (perguntava eu mais atrás). Não creio. A escrita que "fica", que permanece no tempo, há-de ser a que procura, tantas vezes no quase absurdo, um mundo outro, mais á frente. Porque a criação na escrita situa-se sempre antes do "seu" leitor. Quanto antes? Não creio que se saiba, porque muito variável. No limite não serão, sequer, contemporâneos. Acontece bastas vezes... Sinal inequívoco de que a escrita exerce a sua função resulta da partilha de quem lê. Quanto mais a escrita (a leitura) é conversada, comentada, debatida, criticada, mais evidente se torna a sua função social, a sua interacção com a sociedade a que se destina. No extremo se não mexe, se não incomoda, não existe.

Em contraponto perguntar-se-á se - em tempos conturbados, carregados de preocupações a que não conseguimos fugir - faz sentido, por outro lado, procurar, voluntariamente, numa espécie de auto-flagelação, inquietações acrescidas, evitáveis e, tantas vezes, distantes no espaço e/ou no tempo? Não bastará à literatura assumir-se como mero veículo de prazer, descontracção e relaxamento? Nos diversos graus de envolvimento atribuíveis aos leitores, tão diversos entre si no grau de exigência e na capacidade crítica, pode a literatura desempenhar sempre uma função válida e útil? Pode pedir-se-lhe, exigir-se-lhe, essa responsabilidade? Entendo que sim. O sofrimento, a inquietação, o envolvimento emotivo com a escrita, são "coisas boas". Pode o sofrimento ser bom? Pode e, no caso, é! Atentemos no leitor a quem a leitura arranca uma quase lágrima. Se sobrevier um comentário será de consolo, tantas vezes a raiar o êxtase. E não me refiro, obviamente, só à lágrima fácil, arrancada ao leitor por processos estereotipados, de há muito conhecidos e praticados. Mas, também aí, a escrita exerce a sua função social e tem os seus defensores indefectíveis. No conceito "leitor", em abstracto, cabe um vasto leque de sensibilidades, expectativas e exigências. A cada "leitor" a "sua" literatura? Sem dúvida! Se boa ou não cabe aqui a questão.

Do que fica dito ressalta a convicção de que na literatura interessa o que "se diz" e "como se diz". Quanto mais importante é uma vertente em relação à outra? Deixemo-las a par. O leitor há-de valorizá-las, caso a caso, segundo o seu vário e muito respeitável critério e prender-se-á tanto mais à estória quanto mais ela seja, por si mesma, mobilizadora e envolvente, quanto mais próxima se encontre das suas expectativas e quanto mais lhe seja apresentada em narrativa competente, artisticamente ornamentada e próxima duma realidade possível e coerente.

E a resposta é sim! Em definitivo! À literatura cabe sempre um papel eminentemente social.

JOAQUIM DA CONCEIÇÃO BARÃO RATO
(Beja)

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