20 de outubro de 2012

2012 - Prémio Especial Juventude - Menção Honrosa

Cabe, porventura, à literatura uma função social?

A pertinência da literatura é uma questão que ainda hoje provoca profundas cisões ideológicas. Muitos encontram na literatura uma oportunidade de contrariar a solidão ou meramente uma forma de ocupar o tempo livre. Outros procuram nela novas emoções, mais conhecimento ou apenas um modo de exorcizar a tensão inerente à rotina. Pelo contrário, muitos ridicularizam a sua importância, consideram-na como mais um símbolo de frivolidade ou menosprezam o seu carácter pedagógico. Sob qualquer um dos pontos de vista, é indubitável que a literatura ao longo dos tempos tem-se verificado útil ao ser humano enquanto ser pensante, pois mesmo que não resulte num momento de introspectiva, aprendizagem ou descontracção serviu pelo menos de tema para os críticos. Mas será que a relevância da literatura limita-se exclusivamente ao indivíduo como ser singular ou caberá, porventura, à literatura uma função social?

Certamente que a literatura tem um papel fundamental na construção de qualquer sociedade e para comprovarmos isso basta olharmos em retrospectiva e recuarmos até ao tempo da nossa infância. Os contos infantis que nos liam para adormecer transmitiam ensinamentos simples que até hoje têm repercussões no nosso modo de estar e viver, sem que sequer nos apercebamos. Princípios básicos de cidadania foram sendo transmitidos através dessas histórias que aparentavam ter apenas um carácter lúdico.

Para além destas funções informativa e educativa, é possível também reconhecer uma função crítica à literatura. Os autores servem-se da literatura como instrumento para satirizar padrões de comportamento e fazer os leitores repensar nos preconceitos, estereótipos e adágios que aceitam sem se interrogar acerca da sua veracidade. Da literatura nacional, recordo por exemplo a obra emblemática do teatro português dos anos 60 – “Felizmente há Luar!” de Luís de Sttau Monteiro – que, tendo como pano de fundo uma história dramática, coloca em evidência a opressão que se vivia no Portugal dos anos 60, debaixo da ditadura salazarista e que constitui uma espécie de hino de todos aqueles que lutaram pela liberdade do povo português. Memorial do Convento, outro marco da literatura nacional, transmite por um lado uma visão crítica e sarcástica da sociedade portuguesa da primeira metade do século XVIII – hábitos sociais, corrupção, infidelidades conjugais, actuação do rei, da Inquisição - e por outro lado, o possível paralelo entre essa época e a primeira metade do século XX, constitui igualmente uma reflexão sobre a condição humana, as relações entre os homens, as injustiças, a exploração dos fracos, a omnipotência dos poderosos e a miséria humana.

O leitor após compreender estas e outras metáforas preconizadas através da literatura é inevitavelmente induzido a reflectir sobre os seus conceitos e preconceitos. Eventualmente será compelido a modificar a sua de perspectiva de vida e consequentemente moldará o seu comportamento.

Além destas e outras obras, ainda mais efectivos na influência que provocam sobre as culturas são com certeza os livros sagrados que regem costumes, alimentam crenças, influenciam políticas e fundamentam a moral e a ética.

A literatura por si só encerra um compromisso com a liberdade de expressão. É uma reafirmação da negação à censura e, como tal, um contributo para o desenvolvimento de uma sociedade mais democrática.

Uma sociedade sem literatura é perfeitamente inconcebível. O que seria dos românticos sem Shakespeare? Ou dos filósofos sem Platão? Ou Portugal sem Camões?

Há quem defenda que para que possamos compreender uma obra literária, como um romance ou um poema, precisamos primeiramente de conhecimentos ou crenças pré-adquiridos no mundo real e que, por isso, a literatura em nada contribuirá para o nosso conhecimento. Eu interrogo-me se não serão esses conhecimentos e crenças fruto de ideologias anteriormente divulgadas na literatura e, assim sendo, enveredamos num ciclo vicioso em que conhecimento gera mais conhecimento.

Há também quem considere que a ficção é inútil pois «para quê ler coisas sobre gente que não existe? Não passam de personagens em ambientes fictícios. As suas afirmações não são válidas no mundo real.» Mais uma vez questiono-me: a ficção não se baseia do mundo real? E essas personagens, ainda que imaginárias, os são os seus pensamentos, diálogos e aspirações não serão fruto da imaginação do seu autor – um ser pertencente ao mundo real? Parece que novamente somos conduzidos a um ciclo, pois a utopia tem natureza na realidade, logo porque não extrapolar esse conhecimento para o mundo real?

Por tudo isto, sublinho – sim, a literatura tem uma função social. A literatura é o reflexo das aspirações, os sofrimentos, as angústias, a História, os receios e anseios de toda uma sociedade. Não é apenas um símbolo de referência nacional: é informação, educação, formação e porque não também um eficaz fertilizante para a imaginação? A literatura é enriquecedora ao indivíduo na medida em que o faz fantasiar, o emociona, acalma, excita, perturba, ensina, e, sobretudo, o faz reflectir e auto-avaliar. A literatura é uma fonte incontestável de pedagogia social e uma força motriz para o progresso.  

MARISA DA CONCEIÇÃO MOREIRA
(Lisboa)

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