20 de outubro de 2012

2012 - 2º Prémio

Cabe, porventura, à literatura uma função social?

Comecemos pelo fim, qual manifestação de intenção do autor enquanto parte interessada e com juízo feito na matéria, apesar de, como é próprio do ensaísta e em consonância com Savater, termos a noção exata de que a dimensão de determinados temas e a sua complexidade nos ultrapassam, levando a que as questões abordadas permaneçam intratáveis e rebeldes na sua essência. São as dúvidas que fazem avançar o mundo, e é a diversidade de opinião que gera a discussão e a busca de soluções. Sim, mas por nós e sem procurar com isso retirar argumentos a quem de outro modo pense, poderíamos retirar desde já à expressão o termo “porventura” e eliminar a interrogação final para que não sobrassem indícios de dúvida nem pairassem sobre o texto dúbias nuvens de incerteza: Cabe à literatura uma função social. Sim!

Dispensem-se pois tubos de ensaio, provetas e pipetas graduadas, morosas culturas em caixas de Petri para proliferação de fungos e bactérias, bicos de Busen efervescendo preparados para apurar no final resultados cientificamente inatacáveis que legitimem a prévia formulação da hipótese para o problema em causa. Atente-se na questão com o espírito livre de protocolos científicos, esgrimam-se em exclusivo argumentos que derivem do livre pensamento e parta-se à defesa da causa, pois esta é a vantagem do ensaio (espécie de ciência sem prova explícita como advogou José Ortega e Gasset) género literário que Montaigne ajudou a criar deambulando e reflectindo em torno das mais variadas ideias, para depois deixar o convite aos seus leitores ou interlocutores para interagirem com as suas ideias nunca acabadas. Deixemos aos cépticos, aos que legitimamente ousem pensar diferente ou o contrário, o ónus da comprovação ou da negação e sejamos claros: Entendendo como Louis Bonald a literatura como uma expressão da sociedade e colocando-a também na condição de fenómeno que concorre para um sistema que a integra, e que é precisamente essa mesma sociedade, é inegável a função social da literatura!

Mas para que não sejamos acusados de peremptórios em demasia (apesar da tentação para sermos categóricos numa matéria em que a convicção tende a falar mais alto do que a razão), façamos como Octávio Paz preconizava e aceitemos também aqui a existência de uma dúvida, que se prende não com a função da literatura na sociedade mas sim com a direcionalidade e natureza dessa função: Será a literatura uma matéria que influencia a sociedade, sendo por essa via percursora e indutora das mudanças que se vão registando nessa mesma sociedade, ou ao invés será ela um produto que resulta dessa mesma sociedade e das suas circunstâncias a cada momento? Terá a literatura uma função transformadora e criadora intrínseca, ou assume-se ela como o produto gerado por determinado contexto? Será a literatura a maior força de um povo, alforge da sua esperança em tempos de desânimo, e daí o temor dos governos? Ou será a literatura um dos instrumentos a que os governos recorrem para se legitimarem e para alcançarem os seus objectivos? Qual o seu papel na sociedade?

Mais uma vez assumidamente, vamos por Emile Zola quando defendeu que os governos suspeitam da literatura dado tratar-se de uma força que lhes escapa. Assim tem sido realmente ao longo dos tempos e todos os regimes tiveram de se haver com o seu Soljenítsin denunciando os seus Gulags. Mas também todos os regimes se souberam sempre rodear dos seus bajuladores, todos os ditadores se fizeram servir por prestimosos biógrafos capazes de engrandecerem e exorbitarem despudoradamente as suas pretensas virtudes como homens de estado...

Qual é então a força da função social da literatura? Uma força claramente na vanguarda das sociedades tal como hoje as conhecemos, uma energia motriz que se alimenta da criatividade e da inteligência, que resulta da reflexão e da ponderação, que se alicerça na razão e na paixão, que pode ser calmaria ou turbilhão, revolta ou revolução, ódio ou amor, negrume ou raio de esperança, mas sempre uma força a que não podemos ficar indiferentes, prova indubitável da sua função social, hoje e sempre. E tudo isto partindo daquele momento de isolamento em que o escritor se vê perante a página em branco e ousa maculá-la com as suas ideias e pensamentos, elaborando inovadores ensaios e elaboradas narrativas. Esse momento em que se desenham no papel os traços, curvas e pontos próprios da firmeza e das incertezas da escrita, é o momento primeiro de um ato de comunicação do escritor para com os seus futuros leitores, que se consubstancia no momento exato em que alguém lê a sua produção. E, sendo um ato de comunicação, tem naturalmente consequências que resultam da interacção entre o que foi escrito e aquilo que é lido, o que sendo aparentemente uma mesma coisa, não o é de facto na medida em que a mensagem em causa não é percepcionada do mesmo modo por quem a escreveu e por quem a leu, sendo que neste último caso temos, acrescidamente, de pensar plural.

Como nos disse afinal Hernâni Cidade, tudo quanto intervenha na modelação do indivíduo promovendo o enriquecimento da sua consciência, intervirá, em maior ou menor grau, na modelação social. O mesmo afirmamos nós, também a propósito da literatura. Que venham outros, e afirmem o contrário.

JOÃO MANUEL CHAMBEL GONÇALVES PEDRO
(Montijo)

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