12 de junho de 2023


O prazo do concurso decorre até ao dia 11 de agosto


 “Migrantes”, na modalidade de conto, é o tema que o Município de Redondo, através da Biblioteca Municipal, propõe a quem queira concorrer ao XXVIII Prémio Literário Hernâni Cidade.

A iniciativa visa homenagear a memória do escritor e professor redondense que lhe dá o nome e estimular a criatividade literária entre jovens e adultos. A apresentação da edição deste ano decorreu no âmbito da programação do Palavras ao Vento – Encontro Literário no Coração do Alentejo – XXXV Feira do Livro.

Regulamento no link abaixo, na página do Município de Redondo: 

https://www.cm-redondo.pt/wp-content/uploads/2022/07/Normas-Premio-Literario-2023.pdf

3 de dezembro de 2021

1º Prémio - 2021

Porta de pérola

Produzes cerca de mil e quinhentas metades de ser humano por segundo e agora quatrocentas milhões delas estão prestes a entrar na parte final do caminho de saída. A situação é corriqueira, mas hoje merece atenção porque pela primeira vez existe uma metade esperando do lado de fora. Não foi fácil armar isso. Bilhões de anos de evolução moldaram cada detalhe de vossos corpos para que pudessem se atrair e executar os movimentos de uma dança bem precisa; tivestes de vencer a repressão, a timidez, a falta de experiência e os obstáculos práticos; dentro do corpo dela as metades esperaram por treze anos para começar a descer, uma a uma, mês a mês, até que esta se disponibilizasse para este momento; dentro de teu corpo as metades maturaram por sessenta e quatro dias, viajaram por seis metros de epidídimo e canal deferente, se banharam em fluidos seminais, foram guiadas pela dança a se posicionar onde estão agora, quase, quase, quase saindo; e o longo drama vai ter resolução na próxima fração de segundo porque não tens mais como fugir da escolha. Tiras ou não? Os olhos dela estão aflitos, virando, quase fechando, quase desistindo e tu te alegras com o quanto ela se esforça para te manter no campo de visão, tu que nunca imaginaste ser capaz de provocar algo como o que vês agora, a não caber no corpo, a transbordar como se fosse suor, a sair com a voz, com os espasmos, com o gesto de te apertar e te arranhar na cintura, a se mostrar interminável mas que absurdamente queres terminar como nada quiseste na vida, não por causa do final mas por causa do caminho, um passeio pelo paraíso, um olimpo prometido pela biologia com hormônios e sinapses e neurotransmissores, um júbilo tão violento que não mereceria maiores considerações se o ser humano não fosse tão complicado, porque no fundo sabes o que fazer, ou melhor, o que não fazer, não sejas estúpido, este é um risco a não se correr, o pavor que tens do que pode acontecer!, mas, ai, luta injusta!, a convicção não encontra espaço no puro e tenso prazer da mente atual, a resistência precisa agir como clandestina, lá do subconsciente, se fazer presente como vaga hesitação e por fim ato reflexo de movimento para trás quando o líquido começa a avançar pelo caminho final, movimento sensato mas inútil porque tua companheira esboça com o indicador e o polegar da mão esquerda que segura o seio direito um gesto de pinça a apertar o bico e por causa disso perdes o controle, empurras bem fundo e decides ser merecedor deste êxtase ao qual agora não mais renunciarias mesmo que o firmamento começasse a desabar por cima de ti. Afonsa, tempestade adorável em forma de criança, vai nascer ainda este ano no primeiro dia da primavera.


Afrânio de Melo Júnior
Brasil

2º Prémio - 2021

“E se o céu me caísse em cima”, Maria devorava o novo livro, como tantos outros antes deste, quando adormeceu. Sonhou que, enquanto lia, notava uma estranha dor na barriga, quase impercetível, e que sentia como um líquido quente escorregava pela cara interna das suas coxas. O mal presságio percorreu-lhe o corpo num segundo. Soube-o como sabem todas as mães, com esse mágico sexto sentido que obtêm durante os 9 meses que carregam o filho no ventre.

Primeiro, num ato irreflexivo, apertou a mão contra a barriga, essa que albergava o seu pequeno Tiago de 8 meses. Logo, deixou o livro no sofá, aberto pela metade, levantou-se e ligou ao seu marido. Jorge, que em menos de 20 minutos, suado e preocupado, chegou a casa, encontrou a sua mulher muito quieta, pálida, com os olhos brilhantes de lágrimas que teimavam em não brotar e as calças manchadas de sangue. Inquieto pelo que via e lutando contra o instinto de abraçar a sua mulher e afirmar, sem garantias, “vai correr tudo bem”, acompanhou-a ao hospital, submergido num tenso ambiente de silêncio quase fúnebre.

Maria, com as mãos apoiadas na barriga numa tentativa de proteger esse ser por quem desprendia um amor inexplicável e que temia não chegar a conhecer, foi atendida de urgência e encaminhada ao bloco operatório. Em menos de 15 minutos, o cordão que a unia ao seu filho, num vínculo não só físico, mas também sentimental, tinha sido cortado. Pelas suas veias corriam várias drogas; umas para as dores da cirurgia, outras para a ansiedade do momento e outras que a mantinham entorpecida, inconsciente de tudo o que estava a acontecer à sua volta. Infelizmente para Maria, e para tantas outras mulheres, ninguém teve a bondade de inventar um remédio que curasse o coração partido de uma mãe, que nunca chegaria a sê-lo.

Nesse pesadelo efémero, onde os fragmentos das memórias misturavam-se e condensavam-se no que poderia ter sido um segundo ou uma eternidade, passariam várias horas até ser consciente de que o seu filho não sobrevivera ao descolamento da placenta.

Era uma quarta-feira, como tantas outras antes, quando descobriu que o amor de mãe dói, que a perda de um filho pode ser real e injusta e, soluçando adormecida, compreendeu que a sua vida nunca mais seria a mesma. Imaginou, ainda, que desde esse lugar sonhado observava uma etérea noite repleta de estrelas distantes e, qual Atlas, entendeu o intolerável castigo de carregar o peso do mundo aos ombros. Suplicou, devaneando, que o firmamento cedesse, que o céu lhe caísse em cima e lhe aliviasse essa pressão que acolhia no seu peito e que a sufocava lentamente.

Despertou a chorar. Essa dor, a de uma mãe com o coração despedaçado, prosseguia, viva e ardente; e o livro continuava imóvel em cima do sofá, aberto pela metade, tal como o deixara no sonho. Fechou o livro cujo final nunca chegaria a ler e notou como se movia o seu pequeno Tiago. Pousou a mão na barriga como um cumprimento, sorriu; o céu não caíra.


Pedro Manuel Beira Salvador
Redondo / Espanha

3º Prémio - 2021

A minha mãe

No dia em que morreu a minha mãe, decidi que queria ser escritora. A minha mãe nunca aprendera a soletrar mais do que o seu próprio nome, mas contava muitas histórias da sua meninice, da meninice dos seus pais, e da minha também, do que eu não tinha como lembrar. 

Eu não passava uma noite sem ouvir aqueles contos sem fadas, mas igualmente fantásticos. Antes de dormir, uma nova história. E outra. E outra. Até que a minha mãe esgotava o repertório e voltava ao início do rol, só que dessa vez a história ganhava mais outro detalhe, qualquer coisa que ela não teria dito antes, uma nova luz que surgia e tornava mais claros os contornos desse mundo meio real e, suspeito agora, meio inventado.

- Era uma vez, uma menina que... - começava a contar, invariavelmente. A menina que regava feijões, a menina que brincava na fonte, a menina que queria um cão, a menina que ia ao lagar, a menina que não queria crescer.

Na escola, os meus colegas sonhavam com as personagens das telenovelas brasileiras, com vistosas atrizes e corajosos galãs, enquanto a minha imaginação era alimentada pelas histórias do pequeno universo que era aquela vila onde morávamos, as suas pessoas, os seus lugares - sempre tão melhores, por terem como narradora alguém tão especial.

Depois, ganhei o gosto pela leitura: jornais, revistas, os novos sinais de trânsito que um dia semearam na praça. Passava a camioneta dos livros, e lá ia eu. Pedia para me deixarem tantos quantos as regras permitissem, o senhor da camioneta dizia dois, mas às vezes até deixava três. Ainda assim...

- Era uma vez, uma menina que se fez à vida. Fugiu para a cidade e por lá ficou - quase ouço a minha mãe narrar, do jeito como narrava décadas antes.

Não decidi ser escritora como decidem os escritores a sério, quase desde o berço. Apesar do amor aos livros, a idade adulta trouxe responsabilidades, pessoas e atividades diferentes. Tive outras profissões, bastantes e variadas. Hospedeira, secretária, dona de um café. Esposa, mãe, avó.

Mas, no dia em que a minha mãe morreu, decidi ser escritora. É meu desejo deixar em papel todas as histórias que foram contadas e as que estão por contar.

Um dia destes, alcancei o grande objetivo: terminei o meu primeiro livro. Poderia acontecer qualquer coisa, uma revolução ou um apocalipse. Se o céu me caísse em cima, eu pegaria na minha obra e rogaria a Deus: aqui tendes o testemunho desta humilde existência. Mesmo se o céu me caísse em cima, uma parte de mim já não se perdia com a morte do corpo. As palavras. E a minha mãe.


Beatriz Helena Villegas Canas Mendes
Vila Viçosa