20 de outubro de 2012

2012 - 1º Prémio

| narrativas literárias e pensamento crítico: o homem imagina e depois avança |

Se o mundo corre e galopeia, a literatura é um dos lugares com andamento lento onde se aperfeiçoa o entendimento humano sobre a vida lá fora e cá dentro. Se há tempos contados para acordar, conduzir, operar, rir, abrandar, nas narrativas literárias o tempo alonga-se e encurta-se não pelos ponteiros dum relógio mecânico mas pela imersão num universo emocional e reflexivo. O texto faz comunicar o homem que o criou, o produto social que é em si e os outros que o tomam e recriam, num triângulo essencial ao processo de metamorfose continuada da realidade de cada um, primeiramente, e depois do conjunto societal que somos. Através desta conversação íntima e plural, o texto, feito por um homem e refeito por outros, participa como um elemento constitutivo daquilo que dizemos social e cultural – a arte na vida social estimula a formação de um novo homem, com um novo caleidoscópio para ver o seu próprio mundo. O texto literário é em si um instrumento de identidade, mudança e até mobilização: produto e produtor da cultura, saturado pelos valores e conflitos que se levantam no mundo e no tempo da sua feitura, num discurso que é mais dramático do que epistemológico mas que sugere a reflexividade infinita sobre o saber de cada um, dos outros e do universo. As narrativas literárias, num corpo vivo que é a literatura, agem umas e outras, umas com as outras, e vivem sempre que um homem leitor as vive, cruza, decifra, aceita e deforma. Poderá ser esta a maior função da obra, que só se toma por acabada a cada momento que age e transforma ao despertar sentidos, significados e posicionamentos naquele que a toma e recria. O imaginário individual, historicamente situado, ao ser repensado, questionado e ampliado para a pluralidade da realidade através deste diálogo com o texto e o seu criador, também se faz coletivo pelo relacionamento social entre todos - a literatura pergunta, duvida, sugere, critica, supõe, desfaz e volta a fazer, sem impor verdades mas, sim, alargando-as, deformando-as, o que confirma o motor que é na construção social ao desestabilizar o homem leitor, propondo novos desafios, novos pressupostos, novos enquadramentos. Poder-se-ia dizer que, entre as narrativas literárias e o refazer continuado do pensamento crítico, o homem imagina e depois avança. O homem leitor é levado a pensar a sua condição social no tempo em que a vive, a decifrar signos e a cruzar normas literárias e sociais, a criar e recriar a sua própria realidade através da ficção feita pelo homem criador. Poderá dizer-se que a arte possibilita a experimentação duma outra realidade, duma nova vista sobre a realidade de todos os dias, dum lugar com um andamento mais lento e sem a formatação imposta pelo mundo social e temporal em que vive e atua, aberto a leituras, perguntas e reflexões tão plurais como desconformes. Assim, as narrativas literárias fazem mais um trabalho de desalinho do que alinho, de desassossego do que sossego, de encorajamento ao pensamento crítico do que à conformação. Mesmo sendo a leitura um ato de reflexão solitária e, assim, de distanciamento do mundo, o homem leitor atua no mundo numa cadeia de relações. Um único homem pode mudar outros mil, poder-se-ia dizer poeticamente. É a transformação por osmose, que é a sociedade – um lugar de encontros, de atravessamentos, de influências. Claro que seria ingenuidade tomar literatura como uma ferramenta civilizatória, fazedora de bons homens, talhados pelo pensamento crítico positivo e por um movimento de lealdade e compaixão. A literatura mostra, insinua, suspeita, mas é o homem em si que cria e recria, podendo deixar-se seduzir tanto pelo vilão que aldraba e floresce como pelo vilão que se arrepende e sofre, tanto pelo complacente que se revolta e desvirtua como pelo perverso que se reencontra e absolve. Poder-se-ia dizer que é a realidade do dia a dia como o ar que se respira, um ato continuado de vida que acontece, sem perguntas nem dúvidas, uma operação automática e que só se toma consciência se houver incómodo, quando esse mesmo ar rareia ou se apresenta com propriedades diferentes – assim a literatura, então, que nos faz sentir novos ares, com novos aromas, densidades, temperaturas, e que, ao incomodar o natural que é respirar a realidade, faz duvidar, testar, ponderar, perguntar, tornando o homem leitor mais consciente, também incrédulo, meditativo, capaz, sensível, recriador, transformador, pronto a aceitar outras formas de respirar que não aquela que é instintiva, formas nunca antes sequer imaginadas como possíveis e legítimas. É como a criança que vê outra a pedir esmola na rua – é muito provável que ela ponha a possibilidade de levar a criança pobre para a sua própria casa, onde há mais conforto, alimento, agasalho. No entanto, qualquer adulto não levaria este plano adiante – pensaria na estranheza, nas leis, nas acusações, na família (mesmo que essa mesma família não assegure as condições mínimas). Mas, se nos libertarmos do caleidoscópio que usamos inconscientemente para ver a nossa realidade do dia a dia, poderíamos concordar facilmente que nenhuma criança deveria passar por circunstâncias de desconforto e que seria até sensato levar a criança que pedia esmola na rua para um lugar mais apropriado ao seu bem-estar e desenvolvimento. Poderá ser isto a literatura, com a função social de nos manter acordados, despertos para novas formas de ver e tocar o mundo, de debater o que vivemos já sem duvidar, como se verdades absolutas que noutros tempos seriam também questionadas e até rejeitadas ou nunca afiguradas. Redigamos, então: o homem imagina e depois avança.

MARLENE FERRAZ
(Santa Maria Maior - Viana do Castelo)

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