20 de outubro de 2012

2012 - Menção Honrosa

OS LIVROS TÊM MAIS DO QUE PALAVRAS POR DENTRO

Os livros têm mais do que palavras por dentro. Têm o mundo íntimo de alguém que encontra na folha em branco o maior abrigo, o maior colo e o maior abraço. Quando sozinho esculpe o seu silêncio no papel, o interior flui como um afluente e parece que se consegue pôr à distância, que é de longe que se vê mais perto. E quem aquele interior lê pelos seus próprios olhos, não o vê como o autor o escreveu. É que não vemos o mundo como ele é, nós vemos o mundo como somos. E muitas vezes, por sermos frutos similares da condição humana, conseguimos ver o nosso reflexo numa metáfora pertinente, numa ideia que parece ter brotado de nós próprios, numa questão que também a nós interroga. Os livros comem-nos o tempo tão bem! Não só os mais gordos, até mesmo aqueles que parecem anémicos e que se leem sem que precisemos de piscar os olhos uma única vez. A sua erudição sagaz em fazer companhia torna-os amigos de longas horas de café. Os livros são um bilhete para uma viagem, são o melhor meio para evadir de dentro de quatro paredes.

Os livros têm mais do que palavras por dentro. Têm a fantasia, a criação, o talento, a transcendência, a ficção, a quimera, o anseio e a arte. São as telas dos pintores, as pautas dos músicos, as coreografias dos dançarinos, as plantas dos arquitetos, são as estátuas dos escultores! Têm o que não existe à frente dos nossos olhos mas que existe atrás deles, no terreno fértil da imaginação, onde sonhamos, fantasiamos, devaneamos e divagamos por terras que não existem, com pessoas que não conhecemos a uma hora sem tempo. São eles que não nos deixam soltar do apetite imaginativo da infância.

Os livros têm mais do que palavras por dentro. Têm o conhecimento da investigação e das descobertas, têm o saber de quem estuda e escreve para quem fica não cair nos mesmos erros, ou para poder partir de um nível superior na sua própria demanda pelo conhecimento. Quando, numa sala, todos pensam da mesma maneira, então há alguém que não está a pensar. Somente se limita a imitar o que outro pensa. Será, certamente, o livro uma base de lançamento para o pensamento crítico, nunca uma base de reprodução.

Os livros têm mais do que palavras por dentro. Contam os anos da nossa história, relembram-nos diariamente de onde vimos, porque vimos e porque cá estamos. Que passos demos e que passos ficaram por dar. Sussurram, ao ouvido, o outrora de um povo criando-lhe um sentido patriótico de identidade e lealdade, não deixando nunca cair no esquecimento quem, por obras valerosas, se liberta da lei da morte, como diria Camões que dela se desatou.

Os livros têm mais do que palavras por dentro. Condensam a sociedade que os escreve e que cria a cultura onde se inserem. Nas suas páginas está o clima que os acolhe e o Zeitgeist intelectual que os envolve. São o reflexo de movimentos revolucionários, o espelho de paradigmas de pensamento, a cópia de ideias dominantes, simulacros de um contexto que não se apaga ou esmorece.

Os livros têm mais do que palavras por dentro. São um bisturi social ao serviço de todos os seres humanos que, por sua vez, coexistem numa sociedade onde estabelecem interações necessárias à vida. A literatura tem um impacto tremendo do ponto de vista social pois cada livro protege, no seu âmago, uma ideia. E, como sabemos, as ideias são à prova de bala, não perecendo, pois, por meio de um assassinato comum. Cada ideia é uma arma do seu autor, indestrutível do ponto de vista tangível e físico. Produções literárias como A Bíblia, A Origem das Espécies, Manifesto Comunista, Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo, entre muitos outros, marcaram a humanidade de uma forma aterradora, contribuindo para grandiosas mudanças do pensamento individual, grupal, social e societal. Estas incontornáveis obras históricas trouxeram revoluções irrevogáveis, originaram novas crenças e seitas das quais algumas perduram até hoje, ultrapassaram paradigmas científicos vigentes, fuzilaram mitos enraizados por várias gerações, abalaram hierarquias sociais, reformularam o rumo da história. No entanto, não precisamos de rumar tão longe para ver o quanto a literatura pode condicionar as pessoas e as suas relações. (Simples não tem de significar superficial nem profundo tem de significar complexo). Um conto para adormecer o menino estimula a maternidade e fortalece os laços familiares, cartas de amor podem desvanecer a triste dor da ausência e assegurar um até que a morte nos separe, a poesia une os corações dos poetas. Ao conhecer perspetivas demonstradas num romance, uma pessoa toma esse conhecimento como se o tivesse adquirido pela sua própria experiência. A gente sábia sabe fazer isso, aprende pelos erros dos outros, evita ter de os cometer. Esses conhecimentos – que os livros nos dão para sempre – irão converter-se em modos de agir perante o mundo que nos rodeia e perante as pessoas. Os nossos pensamentos podem ser condicionados pela literatura e transformarem-se em palavras ditas. Da nossa boca aos nossos atos é um passo e, rapidamente, essas ações tornam-se hábitos. Se assim acontecer, enraízam-se e transformam-se em caráter. Em tudo o que pensamos, nós nos tornamos. As letras têm esta capacidade fabulosa de nos tocarem, sem obstáculos, o pensamento.

Os livros têm mais do que palavras por dentro. Cabe, em si, a humanidade no mundo.  

DIOGO RAFAEL VEIGA CARREIRAS
(Coimbra)

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