Carta ao Anastácio
O compadre está a ver aquele chaparro solitário plantado nas embalagens do leite? Sim, esse com aquela lonjura toda atrás e um risco sugerindo a imensidão da planície. É mesmo daí que eu lhe estou a escrever. Claro que sentado à sombra, que o sol continua a castigar como um chicote de fogo, nas costas da gente. Eu disse nas costas? Pior. muito mais grave quando assenta mesmo a pino na moleirinha. Veja o que aconteceu àquele moço que ficou três noites a fio pegando uma viola de cordas de vento, pescoço esticado para cima, entoando aquela melodia pastosa "menina que estás à janela com o teu cabelo à lua" ainda lá estaria não fosse o Chico Mataloto ter dó e chamar-lhe a atenção: Oh seu moinante, então tu não vês que hoje é lua nova e a janela fechada a sete chaves!? Onde é que tu vês a menina? Meteu a viola no saco e abalou para Lisboa. O resto já o compadre sabe. Somos cada vez menos. Sérios, respeitadores, pançudos por causa das açordas, mas resistentes ao suão, à canícula, a todos os rigores e à chacota do pessoal da cidade. Nã sê se o compadre sabe, fizemos um garrote no Guadiana. O rio inchou. Agora há água por todo o lado. Até praias já temos. Os finórios que iam para o Ancão ou para Albufeira, agora querem é praia de Mourão ou Amieira. Adeus seca! Isto tem tanta água que nuestros hermanos, sempre muito amigos vieram dar-nos uma ajuda. É só oliveiras e amendoeiras e vinhas regadas e não damos a água gasta! Vomecê não acredita? Nã me venha com essa conversa fiada dos lençóis freáticos e mais não sei quê, como os passarões do ambiente! A gente tem tanta, mas tanta água, que além dos ditos lençóis, também temos cobertores e mantas freáticas, com listas última moda.
Numa terra tão grande que até o silêncio ecoa de cabeço em cabeço somos cada vez menos, compadre Anastácio. Está tudo de abalada. Há os que ficam, os intelectuais dizem que é a força telúrica. A gente não entende e dizemos amor à terra. Ficamos aqui por estas barreiras, semeando mágoas, enquanto a passarada protesta de bico aberto no colo dos dias. Já cá me soou que o nosso governo conseguiu um subsídio da Europa e vai fazer uma reserva de Alentejanos. Já viu o turismo compadre? O aeroporto de Beja cheio de gente anémica de olho azul só para nos conhecer! Fique bem compadre. Eu ainda tenho água pelos joelhos e desconfio que com tanta água, a graça deste texto foi água abaixo. Tal não está a moenga!
Luís Filipe Morais Pereira Marcão
Reguengos de Monsaraz
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