Vagões
Estava apeada no jardim, entretida a observar um
comboio em movimento. Era um comboio metafórico, de carruagens humanas, que se
dirigiam em linhas de espontânea criação. Cruzavam-se, mas não colidiam. O caos
era organizado. Um ensaio, pensei. Mas não. Era uma manhã normal.
Pelo desábito recorrente, ou pela insuficiente
compreensão do que no mundo existe, peguei nessa fresca manhã e desconstruía.
Quis saber seu maquinismo, sua mecânica, as leis físicas que a governavam.
Nenhuma achei. Eram demasiado transmutáveis para as definir. Tudo isto é assim, e poderia ser o seu
contrário também. Quis-me recostar no paradoxo. A constatação, porém, era
aflitiva. Aquela aparente ordem mecânica tinha por base um contracto moral – valores
que dirigiam os comportamentos em amplos carris sociais. Naquela sociedade, a
prevenção da colisão era a norma reinante, numa outra, o choque talvez
imperasse. No fim, sobrou-me essa peça indesmontável. Deduzi que fosse aquilo a
que se chama moralidade.
Parecia uma base de construção absurda, não por
carência de lógica, mas pela amplitude de resultados que podia assumir. No
fundo, os comportamentos fluem numa certa direcção, mas poderiam fluir noutra.
A prova está nas sociedades de distantes estações, cujos comboios podem não ser
vistos, mas cujos ecos ressoam até nós. Talvez seja isso, pensei de mim para
mim, pois que àquela hora nenhum outro vagão dispunha. Talvez a moralidade
esteja viva e seja orgânica e, tal qual célula, se diferencie. Se assim for,
nada se perder, à semelhança do mundo físico, quedando-se em perpétua
transformação. Talvez se inicie por egoísmo, numa protecção instintiva do eu que com o outro se abstém de colidir, e se alargue, em benevolência, para
valores que transcendem a individualidade e encontram fim em si mesmo, no acto
de retidão, ainda que sem beneficio próprio. Talvez seja essa transformação a
utópica: a felicidade achada no pleno bem-estar do outro.
Houve um comboio que colidiu. Os vagões tombaram num
estrépito gutural. Ganhei certeza. A moralidade não se perde, claro que não,
mas pode ser difícil de a encontrar.
Márcia Filipa Freire Dias da Costa
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