Cronilógica de um mundo ao contrário
“Tal
como no mundo físico, no mundo moral nada se perde”
Hernâni
Cidade
O mundo avançou.
E debaixo de um céu de azul profundo, substituíram-se
as grutas pelos apartamentos. As mãos abandonaram os gestos desconcertados,
forjados com a rudeza do pó, e armaram-se de garfo e faca na senda de uma
aventura dos novos tempos. Os incisivos, ávidos de vida, abdicaram de rasgar a
carne mal assada, quase crua, para se rejubilarem no deleite de um prato meio
cheio a casar com um status social
meio vazio. Os pés descalços, castigados pela terra, passaram a deslizar em
duas rodas, deixando num passado imperfeito o valor das coisas simples para
passar a correr atrás dos segundos perdidos sem tempo. Os pueris sons que
ecoavam nos primórdios dos tempos encetaram os primeiros passos, cresceram,
maturaram, tornaram-se adultos.
E a Língua nasceu. E vieram os exércitos
da sintaxe, e da semântica, munidos dos ismos
e dos ónimos. E nasceram as
ideias.
O céu, o tal de azul profundo, ganhou
riscos de branco como um quadro em que se esboçam os primeiros traços. A terra
desordenada e livre, encarcerou-se entre linhas de negro e paredes de pedra.
E o Homem mudou.
E com ele, o ontem transformou-se no
hoje. Já não se “atira o pau ao gato”. Leva-se o gato a passear, porque os
animais, há que protegê-los, que também tem direitos. O “lobo”, já não é mau
nem come a avozinha. Agora a avozinha tem um lobo de estimação, porque os lobos,
há que os preservar, que já há poucos. A tartaruga já não é mais esperta que a
lebre nem chega primeiro a lado nenhum. Chegam juntas. Porque todos somos
iguais, e a igualdade, há que lutar por ela. E o lobo também já não destrói a
casa dos três porquinhos (sim, o lobo, outra vez) ajuda-os a construi-la e
depois vão todos jantar fora. Porque devemos ser todos amigos, e o bullying, há que combatê-lo, que é coisa
feia.
Porque as ideias e os valores, esses,
não desaparecem, adaptam-se, transformam-se. E ainda que o mundo dê meia dúzia
de voltas, envolto na poeira dos tempos, nada do que fomos, deixamos de ser.
Mesmo sem pau para atirar ao gato, nem lobo para ser mau, as histórias
continuam a transmitir mensagens que ficam. E o céu azul? Esse, ainda que de
muitas outras cores, continua profundo, porque nada se perde, tudo se
transforma.
Carla Patrícia Pires Martins
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