“A mulher na
esquina do Parque”
A mulher está sempre
lá – no mesmo cruzamento junto ao Parque Eduardo VII – e por sempre quero dizer
todos os dias, descontando fins-de-semana, feriados e férias, em que nada na
vida me fica naquele caminho. Quando passo por ali – geralmente por volta das
nove – ela já lá está. É uma fraca figura e não o digo para ofender: é baixa e
magra e tem as pernas arqueadas e um ligeiro coxear que compensa fazendo
bengala de um guarda-chuva que traz pendurado no braço. Veste-se de modo muito
prático, de calças largas e camisolas que tapam o peito e a garganta. Tem a
pele curtida, num castanho brilhante, batido como solas de sapato e cabelo pelo
pescoço muito amarelo. A boca está metida para dentro e sem pensar muito nisso,
vislumbro a utilidade profissional desta característica. Pergunto-me que
horário laboral fará. O meu é medido em horas mas a ela vejo-a sempre às 9h embora
nem sempre às 18h. Talvez o horário dela se faça pelo peso da carteira no bolso
e não pelo peso das horas no corpo.
Vejo-lhe as
colegas de profissão que povoam os bancos do jardim à hora de almoço. São
mulheraças voluptuosas de corpo à mostra, cabelos compridos e unhas pintadas. Pelos
vistos, há um pico de procura à hora do almoço. Os senhores dos escritórios que
escolhem precisamente esta hora, para não interferir com o trabalho nem atrasar
o regresso a casa. Estas mulheres, cheias de atributos visíveis, entram ao
serviço mais tarde que ela, por volta do meio-dia. A figura dela não tem como
competir com minissaias, decotes e saltos altos e talvez por isso, faça chuva
ou faça sol, lá está ela, na mesma esquina do parque, desde antes das 9 até
sabe-se lá quando.
Não me chocam as
prostitutas. Não as julgo por isso. Fui criada por uma mãe religiosa que me
ensinou a moral e a justiça e por um pai agnóstico e liberal que me ensinou a
liberdade. Deu nisto, nesta indiferença por aquilo que o outro faz, desde que
não envolva fazer mal a terceiros.
Não é por ela
ser prostituta que reparo nela todos os dias, mas por facilmente lhe dar 65
anos. Bem sei que a vida vai deixando marcas – na alma e na cara – mas esta
mulher, na minha moral, devia estar de pantufas a tomar o pequeno-almoço em
casa, não aqui. Parece-me amoral a sua condição, não de prostituta, mas de sexagenária
que ainda tem de prostituir-se. A minha moralidade comove-se mais com quem não
atinge descanso, do que com quem faz a vida a vender o corpo. As mulheres
sempre usaram as armas que tinham ao seu dispor. O corpo é só mais um elemento
do arsenal. Esta mulher, com esta vida toda na cara e ainda a passar o dia em
esquinas incomoda-me. Quer dizer que a guerra ainda não terminou para ela. Quer
dizer que em alguma altura, as batalhas perdidas foram mais do que a conta e
isso faz com que ela ainda esteja aqui, a lutar. Ela é como nós (não é isso a
empatia?) e a minha moral contorce-se todos os dias por ela ainda estar à venda.
Ana Isabel Guedelha da Silva Neves
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