18 de outubro de 2011

2011 - PRÉMIO JUVENTUDE

A PAISAGEM QUE INSPIROU A MINHA INFÂNCIA






Tenho bem presente na minha memória as altas montanhas dos Pirenéus, donas de um verde espantoso e de uma beleza extraordinária. Fascinava-me passar pela estrada nacional que as rompia. A estrada serpenteava até lá acima… até ao ponto onde as nuvens ficavam abaixo de nós. E era tão lindo poder olhar pela janela e ver as nuvens brancas e esfarrapadas.






Nunca achei que as nuvens se parecessem com algodão. Essa perspectiva é para quem vê de baixo. Lá em cima pareciam mais como fumo branco e inerte. Não se assemelhavam a algo sólido, mas sim a algo com que se sonha e os limites rasgados e lacerados denunciam que não é consistente, que não é palpável. Muitas vezes sonhei, acordada e durante o sono, com a sensação de as atravessar… Como seria cair através delas? Conseguiria respirar? Ficaria molhada? Ou seria como nos desenhos animados e ficaria confortavelmente deitada em cima das nuvens?






As montanhas possuíam em si uma beleza que me coagia a viajar, a querer conhecer todos os que habitavam a cordilheira, a não poluir, a defender a Mãe Natureza. Compelia-me a querer mostrar a todas as pessoas aqueles picos verdejantes que se fundiam na imensidão do céu azul claro e, olhando para baixo, apenas se via o branco das nuvens.






Os Pirenéus fizeram-me querer ser exploradora e partir de catana na mão até conhecer toda a natureza que habitava aquele lugar. Seria uma aventura maior do que qualquer acampamento de escuteiros… estaria ao nível das aventuras que os navegadores portugueses ultrapassaram no tempo dos descobrimentos. Na minha perspectiva de criança, seria o auge da minha vida.






A imagem mais vívida que tenho destas montanhas foi quando aos quatro anos olhei pela janela e as vi. Não tinha sido a primeira vez que olhei para elas mas foi sem dúvida a primeira vez que as vi. O meu mano estava ao meu lado. A emoção de poder partilhar aquela imensidão, aquela sensação de ser pequenina num mundo demasiado grande, com o meu irmão marcou-me. Marca-me.






Mas quando se tem um irmão mais velho com quem nos damos extraordinariamente bem, as paisagens que partilhamos e guardamos na memória escondem momentos, sentimentos, palavras, acções. E os Pirenéus não são excepção. Enquanto olhava para os cumes altos que se avizinhavam, o meu irmão começou a lutar comigo (na brincadeira) e partimos a minha chupeta. Não fiquei chateada. Não naquele momento. Não naquela paisagem. Quis largar a chupeta nesse momento, afinal já era crescida e a calma que aquelas montanhas transpiravam tinha o efeito de eu não sentir medo de nunca mais ver a "chucha". Mas o meu pai, com medo que eu não o deixasse dormir nessa noite, comprou-me uma nova.






As altas montanhas dos Pirenéus sempre exerceram em mim um fascínio muito peculiar: ligam-nos ao resto da Europa. Sem elas seriamos uma ilha luso-ibérica, como na história de Saramago. Menina habituada a viajar pela europa por terra, a conhecer os países e as suas gentes; é natural que o atravessar destas montanhas representasse para mim o caminho "para o outro lado", para o desconhecido, para a aventura. Sempre achei que os espanhóis e Espanha eram demasiado parecidos connosco para se poder dizer que se estava no estrangeiro. Após aquelas enormes montanhas avistava-se terra mais verde, mais vento, mais frio, mais pessoas de cortes de cabelo e roupas estranhas, pessoas mais brancas e línguas esquisitas impossíveis de entender. Era quase um novo mundo, sempre com algo novo para mostrar.






Adorei Helsínquia, capital da Finlândia. Recordo-me perfeitamente da Praça do Senado. A Catedral de Helsínquia erguia-se acima dos edifícios circundantes no meio de uma praça assaltada por turistas maioritariamente espanhóis. Foi o primeiro edifício que vi do género: com as suas colunas, estátuas e frontão triangular era semelhante aos edifícios históricos do sul da Europa, mas as suas abóbadas e pináculos davam-lhe um ar russo. Era linda no seu tom branco e telhado esverdeado. Lembro-me de achar que as escadas que davam acesso à Catedral eram infinitas… Mas quando somos pequenos tudo parece maior e mais distante, talvez seja por isso que tudo no mundo nos parece tão belo.






A Praça do Senado ficou embutida na minha memória por toda a sua beleza. No entanto, esta paisagem inspirou a minha infância de um modo que nunca ninguém iria prever. No meio daquela praça, daquela cidade, naquele país, senti que pertencia. Ali as pessoas eram tão brancas como eu e eu sentia que era ali que eu deveria ter nascido. Embora estivesse num país frio e nunca tivesse vestido tanta roupa de uma vez, sentia-me em casa.






Foi a memória do sentimento de pertença que ali senti que me fez enfrentar e não me deixar abalar pelo gozo dos meus colegas sobre o meu tom de pele. Sempre que a inevitável "brincadeira" que me magoava sucedia, eu transportava-me para Helsínquia e relembrava tudo novamente: o tom de pele das pessoas, a sua alegria, o meu sentimento de pertença, o mercado que vendia coisas engraçadíssimas, os jovens a irem para a escola de skate, patins ou bicicleta…






Helsínquia inspirou-me a fazer planos para morar ou estudar lá na esperança de voltar a ter aquele sentimento que só encontro na minha própria casa. Talvez um dia revisite Helsínquia e, quem sabe, concretizar um desses sonhos de pequena…






Outra paisagem que inspirou a minha infância foram as ruas de Tânger, Marrocos. Para mim, as ruas mais estreitas do mundo, onde se reza para não se cruzar com ninguém porque é impossível que passem duas pessoas ao mesmo tempo. As lojas são pouco mais profundas que montras e vendem tudo. Há ténis da Nike empilhados por todas as paredes. Noutra loja há lenços e malas Hermès e doutras marcas. Noutra loja fraldas e tudo o que faz falta para o quotidiano. Outra é uma espécie de mercearia. Ao lado há uma loja que vende brincos de prata e móveis de madeiras requintadas. São todas seguidas e uma só rua consegue albergar as mais diversas lojas com os mais diversos produtos.






Lembro-me de uma dessas ruas apinhadas de produtos desembocar numa espantosa praça enorme com relva, onde várias pessoas estavam sentadas a conversar ou a ler. Era ladeada de palmeiras gigantescas e bancos de jardim. No centro havia uma fonte igual a tantas outras, mas que tinha um brilho especial debaixo daquele calor avassalador.






Foi então que parei e, enquanto comia o pão tradicional, observei as pessoas e a sua fantástica multiculturalidade. Vi pessoas com trajes tradicionais parecidos às 7 saias da Nazaré a conviverem naturalmente com pessoas de calções, t-shirts e ténis (que não eram turistas), ao lado de pessoas vestidas com burkas enormes a falarem com pessoas em calças de ganga e camisa, havia também homens de fato e mulheres de saias rodadas a condizerem com lenços que lhes tapavam todo o cabelo. A moda como os europeus a vivem não é igual naquele local isolado que tive o prazer de encontrar. Os tons de pele das pessoas também eram de igual notoriedade: pessoas tão pretas como carvão, outras escuras como chocolate, outras pareciam douradas com a luz do sol e outras de um moreno invejável. Gostei do modo como o convívio entre modas e tons de pele tão diferentes parecia pacífico e natural.






Tânger é uma cidade diferente das que tinha conhecido até então e, apesar das discrepâncias monetárias visíveis, acho que os outros povos podiam aprender uma lição de tolerância em relação ao aspecto pessoal. Aquela paisagem fez-me tentar não julgar os outros pelo seu aspecto, quer fosse pela roupa, religião, tatuagens ou qualquer outra coisa que nos distinga enquanto pessoas.









Podia descrever muitas outras paisagens que inspiraram a minha infância, mas considerei que estas influenciaram-me em fazes diferentes do meu desenvolvimento e de forma diferente. Uma paisagem é algo mais profundo do que uma imagem. Só isso não chega. Uma paisagem revela-se na nossa memória quando precisamos de inspiração e aparece no nosso coração quando relembramos as pessoas que estavam ao nosso lado nesse momento. Às vezes é tudo o que precisamos.






ANA MARISA PALMEIRO GONÇALVES



(Redondo)

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