18 de outubro de 2011

2011 - MENÇÃO HONROSA

REINO DE AQUÉM E ALÉM TERRAS DE REDONDO




As lembranças da infância não se apagam nunca. Ficam indelevelmente registadas ainda que possam repousar depositadas no mais profundo dos abismos da nossa memória aguardando pura e simplesmente que um qualquer acontecimento as faça emergir à superfície e se insinuem em todo o seu esplendor, ou não chegam nunca a desaparecer mantendo-se à tona sob a forma de cheiros, sabores, imagens, emoções ou sons com as quais vamos interagindo e dando e dando corpo ao nosso quotidiano. E há memórias a que conscientemente voltamos amiúde quando as circunstâncias e os contextos nos pedem que a elas regressemos. A memória dos espaços percorridos e vividos em criança é uma dessas memórias, a que volto frequentemente. No meu caso essa memória é a memória de um reino.




O meu reino ficava a meus pés na imensidão das vinhas, dos olivais e dos montados que, para lá do Campo do Calvário e da Praça de Touros, se estendiam ao longo da estrada para Évora até perder de vista, naquela planura onde no verão reverberavam ondas de calor que faziam tremeluzir os campos amarelecidos pelo restolho sob o bafo quente do estio e, nos meses mais frescos, se contemplava o vento penteando as searas e agitando os ramos do arvoredo num bailado infindável. O meu reino abarcava tudo em redor, emoldurado pela Serra d'Ossa, pela Boavista, pelos horizontes que se estendiam para os lados de Bencatel, de Terena, de Santa Susana, pelo recorte do casario branco da vila de Redondo no azul luminoso do céu. Lá estavam a Torre do Castelo, a muralha, as igrejas, a massa imponente dos silos da moagem, a adega...




Contemplava as minha terras lá do alto, de perto da igreja de S. Pedro, onde o meu trono ficava num palácio de cristas rochosas que aí afloravam da terra poeirenta sob os pinheiros mansos, e onde gostava de me sentar contemplando, nos amplos e desimpedidos horizontes, aquela que era verdadeiramente a minha terra, uma terra sem fronteiras nem limites. E aí sentado, deixava-me invadir pelos elementos que me rodeavam e alimentava dessa forma o meu espírito, sem o poder saber, para toda a vida.




Havia os sons. Os sons que me chegavam diluídos pela distância, e misturavam o restolhar do vento nos pastos secos e na ramagem das árvores, os ecos de chocalhos de animais no campo, o ruído da serração lá em baixo, o trinar dos pássaros na sua azáfama, a sinfonia de miríades de insectos revolteando nos ares, os gritos dos rapazes jogando à bola e as vozes estridentes das mulheres que ao final do dia chamavam os filhos pelas ruas da vila...




Havia as cores, sobretudo na primavera, quando múltiplos tapetes de flores campestres polvilhavam de branco, amarelo e violeta os tapetes verdes de ervas rasas que serviam de chão aos olivais e montados, em contraponto com a cor dourada das searas prenhes de sementes oscilando ao vento uns meses mais tarde, ou à cor fulva do barro da terra exposta quando fendida e revolta pelos arados dos tractores. Havia depois aquele azul do céu, único e imenso, feito de luz e trasparência, povoado aqui e ali por farrapos brancos de nuvens vagarosas empurradas pelo vento suão, que se iam transformando ao sabor da minha imaginação enquanto as contemplava deitado nas lajes quentes de granito que me serviam de mobília. E havia o cinzento plúmbeo que se instalava nos dias de trovoada, recortando ainda mais se possível o casario contra o céu, sobretudo quando os raios de sol incidiam ainda sobre a vila e pintavam de amarelo dourado as paredes brancas, enquanto a chuva não chegava tingindo inevitavelmente de cinza toda a paisagem em volta e derramando cortinas de água sobre os telhados luzidios, para depois escorrer generosa e transparente pelos beirados sobre o empedrado dos passeios...




Havia os cheiros. O cheiro acre do fumo negro elevando-se aqui e ali entre o casario vindo dos fornos que se acendiam nas olarias para que o fogo cumprisse a sua missão de completar, com a alquimia das altas temperaturas, o trabalho saído das rodas e das mãos dos oleiros, dispersando-se depois dolentemente na atmosfera enquanto fazia sombras fugidias nas paredes e telhados da vila. O cheiro a terra molhada, impregnado de restolho, que se levantava do chão quando as primeiras gotas de chuva se derramavam sobre as terras em redor, secas e ávidas de água, e que ainda hoje é a memória viva desses tempos quando se repete. E o cheiro a poejos que se insinuava naqueles ares e me era trazido pela brisa suave desde os campos mais abaixo onde pequenos regatos lhes afagavam as raízes...




Nesse local, de que me sentia dono e senhor, gostava de me perder no tempo, de estar sozinho dando largas à fantasia de reinar num território só para mim num local inexpugnável nas suas muralhas de pedra ocultas pela copa frondosa dos pinheiros. Absorvendo cada elemento de toda a paisagem em redor, desfrutando do prazer daquela solidão, gostava muitas vezes de quedar-me absorto nos meus pensamentos sobretudo à hora mágica do dia em que o sol se propunha render-se à noite e no céu se recortava a lâmina fina e brilhante da lua em quarto crescente, qual foice de luz riscando o astro, preparando-se para derramar daí a pouco, sob o céu polvilhado de estrelas, o seu manto diáfano de ténue luar que tingiria depois a terra com o seu halo azulado onde habitariam apenas vultos sombrios de sobreiros, e oliveiras, e rastos de pirilampos, e onde ecoaria o cantar sincopado e frenético das cigarras. Entre aqueles campos, aquele casario, aquelas gentes, deixava deambular a minha imaginação e contruía as histórias e as aventuras que nunca partilhei com ninguém, património da minha intimidade carregado pela força telúrica que emanava de toda aquela envolvência e que remanesce dentro de mim.




Talvez por isso, decerto por isso, a este meu reino regresso invariavelmente mesmo quando lá não estou e a despeito da distância que o tempo induz nas coisas da memória. É o meu reino onde ainda hoje faço poesia e escrevinho contos e romances, onde me recolho para meditar, para me conformar ou para me revoltar, umas vezes para rir e outras para chorar.




Porque esse reino está mesmo lá mesmo eu não estando, porque da infância me traz e me ficou, porque é neste reino que sinto as minhas raízes profunda e inabalavelmente agarradas à minha substância, porque sem um reino destes não seria afinal quem hoje eu sou.












JOÃO MANUEL CHAMBEL GONÇALVES PEDRO



(Montijo)

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