18 de outubro de 2011

2011 - 1º PRÉMIO

LAÇOS

Uma velha mesa poeirenta no centro de uma sala vazia. Ali esquecido, um jornal com notícias de outrora repousa em cima de um sofá igualmente velho, igualmente poeirento. A lareira de pedra impõe-se, austera, neste espaço que respira instantaneamente, além da poeira do tempo, a nostalgia de um passado que agora se mascara de ilusão de presente.






O corredor vazio engana os sentidos parecendo maior do que é na realidade. Lá ao fundo, uma porta entreaberta liberta pensamentos distantes e memórias perdidas. Memórias inscritas em cada recanto desta casa e que se vão libertando, uma a uma, da vil lei do esquecimento e começam a ganhar forma, como se fossem pequenos fantasmas tímidos que por aqui deambulam ansiando por se revelar.






O abrir da janela, deste que foi em tempos o meu refúgio de ideias e palco de aventuras imaginadas, deixa entrar, com os primeiros raios de sol da manhã, o despertar de uma nova consciência.




Lá fora, a rua também vazia, de gente e de vida, parece adormecida e alheia ao meu olhar e à minha presença, como se eu fosse agora uma mera transeunte, apenas de passagem. Uma estranha sem rosto e sem história. Mas a minha história também já se escreveu aqui. Num ontem distante, esta rua que agora percorro, gritava as histórias de todos os que aqui se fizeram gente.






Em cada casa habitavam histórias diferentes. O burburinho da manhã desvanecia-se à medida que o dia avançava apenas para ser substituído pelo burburinho da tarde, quando as gentes voltavam do campo, ao final do dia de trabalho e a vila se voltava a encher de alma. Todos os dias eram iguais sendo a rotina apenas quebrada por uma ou outra cara desconhecida que vinha até cá para contemplar a beleza do castelo que há alguns séculos foi plantado no cimo desta colina, sentinela atento, cujo olhar penetrante se perde pela paisagem em redor. O velho sino da torre do relógio, agora silenciado pelo desgaste do tempo, ainda se impunha, fazendo-se ouvir em cada recanto destas muralhas de pedra.






E os cheiros. Recordo agora cada cheiro, cada aroma intenso que por entre estes becos e ruelas escondidos ajudaram a construir as histórias da minha infância. Os cheiros que chegavam e partiam com cada estação do ano como os turistas, os tais de cara desconhecida que cá vinham de tempos em tempos para também eles respirarem bocadinhos da nossa História. A intensidade do aroma da terra transformado pelas primeiras chuvas, o cheiro da lenha a arder vivamente na lareira cá de casa, esta lareira de pedra de onde o calor há muito se extinguiu. O perfume suave das rosas do quintal da vizinha e das flores de cores diversas que, à chegada da Primavera, pintavam os campos em tons de arco-íris e que brotavam aleatoriamente aqui e ali fazendo as delícias dos olhares mais atentos. O cheirinho adocicado dos bolinhos de canela que a minha avó fazia todos os anos durante a época da Páscoa e do pão fresco, acabadinho de sair do forno, que desde sempre me lembro de ser feito na padaria da vila, situada lá em baixo no vale, no meio desta melancólica paisagem alentejana.






Dentro do limite das muralhas a vida parecia imune a qualquer tipo de mudança. E mesmo lá em baixo, no vale, nada mudava radicalmente. As pessoas, as coisas, os lugares pareciam sempre os mesmos. Até mesmo hoje, passados dez anos desde o dia em que disse adeus a esta terra onde me fiz, também eu, gente, tudo parece igual. Ainda reconheço, por detrás das linhas traçadas pelo senhor tempo, esse escritor de histórias e pintor de vidas, os traços familiares nos rostos que outrora fizeram, de uma forma ou de outra, parte da minha história. A escola primária, a minha escola primária, agora remodelada, ainda exibe o mesmo espaço onde em tempos brinquei aos piratas e princesas, cenário dos primeiros amores e desamores de uma jovem vida. A igreja onde a minha avó me levava pela mão todas as tardes de domingo para ir à catequese só abre agora para receber meia dúzia de fiéis que, por força da devoção ou do hábito, ainda cumprem os deveres de bons cristãos.






Mas o momento mais marcante destes domingos de catequese era o caminho de regresso a casa porque a paisagem, essa, nunca se apresentava da mesma maneira. O percurso era feito debaixo de um céu multicolor, umas vezes em tons de rosa e púrpura, outras de um azul celeste e pinceladas de branco como se o mundo tivesse acabado de nascer. À medida que ia deixando o vale em direcção à colina, a vila tornava-se cada vez mais pequena, como que perdida na imensidão da paisagem, qual ilha disposta em alto mar.






Aquela paisagem que no inverno se cobria de um véu misterioso e fazia desaparecer o castelo, o nosso castelo, o meu castelo, e que no verão se tornava ainda mais intensa, quase sufocante.






Lá do alto esta paisagem que se vislumbrava, que ainda se vislumbra, era sempre um quadro distinto, multicolor, mutável…vivo. Foi com ela que criei laços que definiram aquilo que fui ontem e o que sou hoje. Os mesmos laços que me ligam a esta terra com a certeza de que são suficientemente fortes para resistir à efemeridade do tempo. A certeza de que estas paredes de cal, estas muralhas de pedra, estas ruas agora vazias de gente, aquela vila plantada no vale que cá do alto vislumbro com ternura, esta paisagem saudosa que sobre mim exerce fascínio e me prende a respiração, estarão sempre aqui para contar a minha história porque também eu nelas estou inscrita.






Aqui me perdi e voltei a encontrar vezes sem conta. Aqui, onde cresci. Aqui, onde aprendi a ser. Aqui, onde vivi. Aqui!






Nesta paisagem de amores impossíveis e histórias por contar. Esta paisagem que inspirou a minha infância.






CARLA PATRÍCIA PIRES MARTINS






(Évoramonte)

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