18 de outubro de 2011

2011 - 2º PRÉMIO

SONHOS FLORIDOS

Carrego um amontoado de anos sobre as costas. São quase cem. Há lembranças que se desfazem nos declives da minha memória. Há outras, muito antigas, que permanecem vivas, como se tivessem nascido neste preciso momento.




Nasci nesta terra maravilhosa. Não digo o nome. Fica para descoberta do prezado leitor. Passei aqui a minha infância e guardo religiosamente no meu coração todas as inspirações que esta paisagem exerceu e ainda exerce sobre mim.




Depois de muitos anos de ausência, voltei a este cantinho do meu Portugal. Os sonhos, os meus sonhos, porque em toda a parte se pode sonhar, começaram a florir num bailado de recordações repletas de magia, onde a idade se perde nos recônditos mais íntimos da minha vontade de viver, para poder contar aos meus netos e bisnetos o quanto tive de belo nesta natureza ímpar.




Vejo-me novamente a saltar por penhascos e árvores; a chapinhar nos pegos das ribeiras; a subir as antas que guardam nos seios milenares sonhos que floriram e outros que ficaram só em botão; a atirar pedras aos pássaros com uma fisga feita com o elástico de uma liga que roubei à minha mãe. Eram aos milhares as aves que esvoaçavam nas encostas da serra. Eu não sabia, ninguém sabia o mal que fazíamos, quando atirávamos sobre as lindas avezitas. Os piscos, as felosas, as toutinegras, os gaios e tantas outras aves, eram aos milhares formando nuvens no céu do céu e no céu da minha meninice. Eu percorria vários quilómetros por dia, em busca da descoberta. E descobri a paisagem que envolve o tempo do meu tempo, onde prevalecem os retratos, nunca tirados, mas onde vejo a minha infância nítida e transparente, como era a água daquele tempo.



Depois, eu descia e vinha sentar-me à sombra duma frondosa azinheira, para almoçar com o meu pai e a minha mãe. Era quase sempre um pedaço de pão com umas falhas de toucinho e azeitonas. O pão era feito pela minha mãe e tinha sabor a sonhos floridos. A água estava numa infusa de barro para permanecer mais fresca. O tosco cocharro de cortiça, por onde bebíamos era, naquela altura, para mim, uma valiosa obra de arte.




Logo que acabavam de comer, lá iam os meus pais ceifar. As espigas, no seu farfalhar, falavam e cantavam. Pareciam gente... e eu ouvia, ouvia, os seus melódicos e dolentes cantares, preparando-se para poderem dar à luz o pão que mitigaria os desejos de tantos estômagos. As papoilas, de um vermelho não muito rubro, corriam ao desvario quando a brisa era mais intensa. O que mais me intrigava era que ficavam sempre no mesmo lugar. Parecia magia. Ali tudo era mágico! Até o pôr-do-sol exercia uma força poderosa sobre mim, criança de cinco ou seis anos. Estive em vários países, mas nunca vi um poente tão fascinante como este da minha terra. O crepúsculo benzia com os seus soberbos sombreados as copas das sobreiras e das azinheiras, num adeus ao dia que se ia deitar com as estrelas, na cama da lua, para voltar novamente, passadas algumas horas, com o sol no seu bailado de reflexos.




Eu só ia à vila de tempos a tempos. Às vezes lá ia com o meu pai, quando ele precisava de comprar umas botas de sola de pneu. Eu não usava nem botas nem sapatos, mas corria e saltava por todo o lado. Uma vez calcei as botas do meu pai e achei que aquilo me atrapalhava muito e era difícil correr, com aquela geringonça nos pés, para apanhar uma lagartixa ou outro bicharoco.




A minha avó, já muito idosa, com uma grande corcunda nas costas, que a fazia andar toda enrolada, passava os dias a fazer flores de papel, para as grandes festas. As flores eram tão bonitas que se assemelhavam às papoilas que corriam com o vento, mas que ficavam no mesmo lugar. Outras flores faziam lembrar os grandes girassóis que seguiam religiosamente o Sol no seu dolente andar. Eram flores tão lindas feitas de papel, que enchiam alcofas e alcofas. Ali estavam os meus sonhos floridos, numa paisagem curta mas distinta, onde a história da minha terra é saboreada por quem vê, com os olhos do espírito, que as tradições são a alma de povos e gerações.




Nunca pensei voltar a ver as festas da flor. Não sei se posso chamar a este encanto uma paisagem, porque, na realidade, eu sei o que é uma paisagem. Na minha infância eu vivi e vi a mais bela paisagem ou paisagens, que me marcaram juntamente com as festas da flor, mas eu não sabia o que era. Era apenas a minha terra semeada de sonhos, que mais tarde se transformaram em cravos floridos.




Hoje voltei a ter os meus cinco, seis e sete anos e o mundo de outrora voltou à minha mente. As lágrimas marejaram-me os olhos, como que a vendar o presente para ver e reviver o passado.



A vila parece um mar de flores! Até aquela senhora, tão idosa como eu, me fez lembrar a minha avó... com as suas alcofas cheias de flores de papel. As janelas parecem molduras de onde pendem cachos de rosas silvestres, dálias, hortênsias, malmequeres, papoilas, girassóis e grandes cravos vermelhos, que tombam nas ruas e sorriem para quem passa. É preciso saber compreender os sorrisos das flores. Eu sei. Um homem não deixa de ser homem por gostar de flores e ser sensível a elas.




Ao longe, vislumbro os imensos terrenos caiados de pérola pelo restolho, que forma uma toalha matizada pelos raios solares, estendida numa grande mesa, onde as aves, as aves da minha infância comem os grãos que ficaram caídos.




Vejo as encostas da serra com os seus penedos. Oiço o correr da ribeira. Tenho na boca o sabor do pão que a minha mãe fazia e brinco com os caroços das azeitonas que comia e me sabiam a mel.




Nestas festas da flor, olho o meu bisneto, que tem seis anos, e vejo nele a paisagem que marcou a minha infância, nos seus sonhos floridos.









MARIA DA GLÓRIA DUARTE MARREIROS JOSÉ






(Portimão)

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