O CANTO DAS CEREJAS
Tac…Tac… Caíam na manta relvada do chão macio. Uma a uma, redondas, cintilantes na sua capa encarnada. A gravidade não fazia o trabalho sozinho. A vara da tia Carmelinda era a força impulsionadora.
Eram de facto cerejas e, ainda hoje, recordo o canto ecoado na mente da criança franzina. Pés descalços, confortáveis na frescura do piso. Permanece-me entranhado nas narinas o perfume das flores e o aroma desse fruto delicioso. Os meus olhos ainda avistam o verde da paisagem. Quando adormeço, os pássaros embalam-me os sonhos.
De saias compridas, quase a raspar o chão, socos ruidosos e avental à cinta, desfilava uma velhinha, numa azáfama de mulher atarefada. Ora transportava uma bacia de onde pendiam trapos, preparados para serem esticados na corda junto ao rego de água. Ora rapava a erva, de foucinha afiada, acumulando, em cerca de 10 minutos, o lanche dos coelhos cinzentos e orelhas descaídas.
Toc…Toc… Os socos batiam no chão e ecoava a presença da doce velhinha a quem docilmente eu chamava de avó. O doce estava sempre presente. No sorriso dela e no meu, quando gulosamente saboreava o caramelo desbotado que ela guardava delicadamente para me oferecer.
Às Segundas-feiras, à saída da escola, a ordem cumpria-se: ir ter com a avó, caso a mãe ainda não tivesse chegado da feira. E era a escola que de facto preenchia a minha vida…
Nos meandros encarreirados, saltitava feliz. A escola avistava-se branca a meio do percurso. O cheiro a papel camuflava o mofo das carteiras perfuradas pelo bicho – da – madeira.
Clementina denominava a agridoce professora, artista experiente em pincelar com ensinamentos as telas vazias de muitos meninos. Como aprendiza dedicada, fui preenchendo as tardes da minha infância. Entre contas e ditados, o horário não dispensava a hora do recreio, quase sempre guarnecido com pão e marmelada.
Num desses dias de escola, não foi apenas mais um… Saímos em direcção ao Castro. Registei na memória, esse evento como o único passeio que fiz com os meus colegas da Escola Primária. Já nesses tempos se falava de uma gruta, onde mouros guardaram tesouros. Onde sons estranhos davam ecos a medos e receios, transformando o local num dos mais misteriosos do Concelho.
As gotas de suor salpicavam-nos o rosto, humedecendo a vontade de chegar ao cimo do monte. Aí, a vista surgia maravilhosa, compensando o esforço no trilho percorrido. Pedaços brancos de algodão afiguravam nuvens, pendentes num azul celestial. Infinito, num horizonte pintado de verde, com elevações a contornar uma pequena povoação. Na zona central, as casas surgiam mais aglomeradas, dispersando-se um pouco em direcção à periferia.
- Senhora Professora, a gruta é naquela direcção? Vamos lá espreitar? – perguntou um dos miúdos e todos fomos ver. Dirigimo-nos em grupo para o sítio que o miúdo apontava, enquanto este simulava truques usados na defesa contra um mouro imaginário.
O termo gruta não seria o mais apropriado para descrever aqueles dois penedos. Lado a lado, separados apenas por uma giesta, ornamentada com flores amarelas. Num arranjo floral oferecido, pela natureza, em agradecimento à integridade do local.
Em tempo de férias, às Segundas, acompanhava a minha mãe nas idas à feira. Em pleno centro da povoação instalavam-se inúmeras barracas. Várias fragrâncias suavizavam o ar, assinalando os diferentes pontos de venda. Era possível comprar pão, fruta, peixe, roupa, artigos em ouro e outras surpresas. A maior de todas era oferecida pela vendedora que circulava no seio da multidão, carregando uma bilha revestida de cortiça. Era uma figura alegórica, de pés descalços, saia rodada, avental atado à cinta e lenço na cabeça.
-Quem quer limonada fresquinha? – apregoava enquanto servia água num copo de vidro, partilhado por todos os sequiosos interessados em pagar uma moedinha.
Nessa altura, havia muito tempo… Tempo para sorrir, para correr, para brincar, para ler ou escrever e mesmo para contemplar a paisagem que sempre inspirou a minha vida...
Às vezes pergunto o que procuro neste amontoado de fumo que uso para substituir essa paisagem. Não sei bem o que faço nestas filas intermináveis ao som de buzinas que me ensurdecem e agitam a mente. Qual a razão de não ter encontrado naquela paisagem de sonho, o sonho da minha?
Talvez as cerejas não tenham cantado o suficiente para me enfeitiçar…
ANA MARIA DA SILVA CUNHA
(Braga)
1 comentário:
Excelentíssimos Senhores,
Foi com grandíssima alegria que recebi a notícia relativamente ao resultado do prémio literário Hernâni Cidade 2011. Receber o vosso reconhecimento, é uma enorme honra.
Embora a minha formação base seja mais voltada para as ciências (sou professora de Biologia e Geologia), as letras preenchem-me a alma e alimentam-me os sonhos…
Em 2008, fui agraciada com uma Menção Honrosa e, nessa altura, tive a possibilidade de me deslocar pessoalmente ao município do Redondo. Apesar da grande distância que separa o Minho do Alentejo, é sempre um prazer visitar a vossa região, pela beleza da paisagem, a maravilha da gastronomia e a simpatia das vossas gentes.
Infelizmente, hoje, não me foi possível comparecer… por razões alheias à minha vontade. Contudo, o elo já foi estabelecido. O Redondo marcou a minha história, marcou a minha vida.
A todos os responsáveis pela organização deste prémio, muito obrigada.
Ana Cunha
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