18 de outubro de 2011

2011 - MENÇÃO HONROSA

UMA PAISAGEM, A MINHA MÃE




Pedem-me que fale de uma paisagem que tivesse inspirado a minha infância... Por mais que puxe pela cabeça, nenhuma me vem à memória. Nenhuma... a não ser a minha mãe. Pode uma mãe ser uma paisagem? A minha era. A minha às vezes era uma montanha, outras vezes um bosque. Umas vezes uma seara, outras um campo arado. Um lago, um mar. Tudo isso era a minha mãe. Por isso vou falar-vos da paisagem que era a minha mãe.



A minha mãe tinha sempre muito que fazer e ainda por cima era costureira. Era na época das festas e nos casamentos que ela se via a braços com mais trbalho. Tinha de acabar as roupas para o dia que lhe pediam e muitas vezes isso não acontecia e as pessoas zangavam-se com ela, mas acabava sempre tudo como deve ser. Ao pagarem, as pessoas achavam um bocado caro, porém não calculavam o trabalho despendido, os serões gastos a pedalar na sua Singer e os materiais necessários para confeccionar um vestido ou um par de calças. Apesar de tudo, vinha gente de muito longe encomendar-lhe roupa por medida e achavam-na muito boa costureira. Vivíamos numa aldeia distante de tudo e onde tudo à volta era paisagem. Mas eu acho que era a melhor costureira de Portugal. Eu acho mesmo que era a melhor do Mundo!



As mãos da minha mãe eram mágicas. Ela fazia tudo com elas. De um pano de fazenda, traçava uns riscos com giz ou com um pedaço de sabão azul, media aqui e media ali com a fita de costura, pregava uns alfinetes nos sítios certos, alinhavava em baixo e cosia em cima e estava um par de calças pronto na perfeição e o cliente com um sorriso nos lábios. Para um vestido complicado com muitos folhos e laços e lacinhos era a mesma coisa. À primeira prova batia tudo certo, quase nunca era preciso emendar fosse o que fosse e as pessoas ficavam contentes. Ela nunca fez um vestido de noiva, mas eu tenho a certeza que não teria problema nenhum em fazê-lo, assim com imensos follhos e imensas rendas e uma cauda muito comprida para arrastar pelo chão. Eu daria um braço - sim, daria um braço - em como uma princesa qualquer ficaria satisfeita se mandasse confeccionar à minha mãe o seu vestido de gala. Neste caso, teria era de trazer os tecidos e as rendas e os tules e o tafetá e as pérolas do seu país, porque devem ser materiais caríssimos para uma princesa.


A minha mãe era muito habilidosa e fazia coisas espantosas com as mãos. Além dos vestidos lindíssimos, com folhos, sem folhos, com balões, sem balões, com laços, sem laços, de Primavera e de Verão, além das calças e dos calções, das batas e das blusas, das saias e dos casacos, era ela que também costumava fazer grande parte dos enfeites para a nossa aldeia. Ela e a tesoura tinham uma relação muito estreita, de profundo entendimento. A tesura fazia parte da mão direita da minha mãe. Ela dobrava várias vezes o papel colorido e fazia fitas com recortes de estrelas e flores e inúmeras figuras geométricas de uma imaginação e efeito surpreendentes. As pessoas que as colavam com cola de farinha nos cordéis em ziguezague ao longo das ruas ficavam de boca aberta. E os balões? Os balões ficavam tão bonitos como cachos de glicínias. Digamos que ficavam a fazer parte da paisagem da nossa aldeia. Aqueles rendilhados entrecruzados de várias cores eram de um capricho e um fascínio que baralhavam a cabeça de qualquer pessoa e deixava-a a pensar: como é que isto se faz? Como é que alguém consegue fazer uma coisa assim? Às vezes penso que era uma pena ver aqueles balões deslumbrantes estragarem-se, pendurados ao vento ou à chuva, porque eram verdadeiras obras de arte que duravam poucos dias.



É: as mãos da minha mãe eram mágicas, faziam maravilhas. Ela e a tesoura faziam milagres e a tesoura tinha tanto uso que às vezes, em vez de cortar, mastigava. Era aí que entrava o amolador de tesouras, que de quando em quando passava pela nossa aldeia. Vagaroso, vinha na sua bicicleta, uma pasteleira ferrugenta com a caixa das mós atrás, e não amolava só tesouras e facas, também consertava chapéus de chuva e punha gatos nos alguidares de barro rachados. Ia tocando a sua flauta de Pã pelas ruas, para chamar a atenção do povo. O capador de porcos também tinha uma, mas não combinava nada com o seu tipo de ofício: uma vez vi-o capar um porco e logo a seguir comer os testículos do pobre animal, assados com sal e vinagre nas brasas. E o porco a ver, coitado!... O amola tesouras era mais romântico, apesar de me parecer tão velho quanto a minha avó. O som da sua flauta de Pã era muito singular, parecia que ondulava para a frente e depois regressava ao ponto de partida e ficava no ouvido como uma melodia do paraíso. Eu ía logo a correr e mandava-o parar, depois trazia-lhe a tesoura da minha mãe, que já não cortava mas, mastigava. O amolador já me conhecia desde muito miúdo e fazia-me brincadeiras do género: orelha, telha ou puxelha?... E eu baralhava-me sempre e dizia telha ou dizia puxelha, e ele puxava-me as orelhas para cima ou para a frente, respectivamente. Ou outra assim: de quem é esta cara?... Ele apontava para perto do meu nariz, eu devia responder que era dele, mas também me enganava sempre e respondia que era minha e então ele puxava-me o nariz, dizendo: se é tua, para que serve este marco aqui ao meio?...



O amola tesouras era muito divertido e muito simpático e até me tratava por Nico. Então Nico, já tens muitos ninhos? Ele sabia que eu gostava de pássaros e de ninhos. Olha, ontem vi um pica-pau; e tu, já viste um pica-pau? Coisas assim. Ele dizia que já tinha visto um cuco e eu não acreditava - não acreditava!... Então punha as mós a desandar e as lâminas da tesoura até faziam faíscas miudinhas. Um cuco?... Depois experimentava a tesoura num papel e depois experimentava a tesoura num pano, e dizia: perfeita, como nova. E dava-lhe cem escudos. Um cuco? Não acredito, era mais fácil ver aqui uma gaivota e estamos tão longe do mar. E ele: Nunca percas a esperança, Nico, nunca percas a esperança. Porque um uco e uma gaivota o que têm em comum são as asas e as asas levam-nos longe. Dava-me um apertão nas bochechas e ia-se embora a sorrir, empurrando a bicicleta ferrugenta, vagarosamente, e fazendo-se ouvir pela flauta de Pã. O som ia e vinha, subia e descia, parecia que ondulava, fazia parte daquela paisagem. O amolador, ele próprio, também era uma paisagem: olhando para ele, viam-se os quatro cantos do mundo. Um cuco? Não acredito...



Voltava com a tesoura afiada e a minha mãe nem precisava de a experimentar porque sabia que o amolador era de confiança. Ela ficava contente, porque uma costureira com uma tesoura que mastigava o pano era uma má costureira e ela e a tesoura afiada faziam maravilhas. Apenas ao domingo deixava a tesoura e a Singer em paz.



A minha mãe era a número um do universo. No meu livro de leitura havia uma lição que se chamava «Tu és linda, minha mãe!»* e contava a história de uma mãe que queimou as mãos para salvar o filho que dormia no berço. Ela não queria que o filho as visse, tão deformadas e cheias de cicatrizes estavam, mas o pequeno acaba por lhe dizer assim: «As tuas mãos são as mais belas do mundo!»



As mãos da minha mãe não tinham queimaduras nem deformações, apenas a pele engelhada, e frieiras e calos da tesoura e picadelas de agulha quano se esquecia de utilizar o dedal. Mas também as dela eram as mais belas do mundo. Eram mesmo as mais belas do mundo!



Melhor dizendo, a minha mãe era o mundo e cada mão tinha o tamanho de uma paisagem. Quando me pegava ao colo e, mais tarde, me abraçava, eu sentia-me uma árvore no meio dessa paisagem. Influenciou-me e julgo que dei, como árvore, os meus frutos.




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*Texto de António Botto, «Tu és linda, minha mãe!».







PAULO JOSÉ COELHO CARREIRA


(Batalha)

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