19 de outubro de 2015

Trabalhos Premiados - 2015

1º Prémio
"A síndrome do senhor Miguel"
João Manuel da Silva Rogaciano
(Alverca)
Apoio: Município de Redondo

O senhor Miguel andava apático. Asténico. Distante de tudo e de todos. Ele, um indivíduo altamente letrado, um amante de livros, que mastigava e saboreava cada floreado frásico, cada palavra, cada letra, cada vírgula ou ponto final, deixara simplesmente de ler. Não conseguia abrir um livro que fosse. Nem sequer um opúsculo; nem a lista das compras semanais. Reformado, passava, agora, os dias a ver noticiários e novelas, que se sucediam em catadupa, na sua televisão e o sufocavam cada vez mais.
            Numa manhã em que a sua mente estava um pouco mais arguta, o senhor Miguel decidiu sair da sua letargia habitual e procurar ajuda médica, para tentar saber que tipo de doença teria contraído. Aprontou-se e saiu de casa, rumo ao centro de saúde local, para marcar uma consulta. Nada feito: consultas de clínica geral, só dali a cinco meses. Aborrecido com aquela contrariedade, resolveu aproveitar o soalheiro dia e passear um pouco. Passou junto à biblioteca municipal. E ficou parado à porta, sem sequer sentir um residual desejo de ali entrar, como no passado acontecia.
- Estou mesmo doente! – pensou, entristecido, enquanto voltava os olhos para o chão, em desespero.
Foi então que o seu olhar foi atraído por um colorido papel, caído a seus pés, que trazia uma estranha mensagem: “Tem astenia literária?”. Baixou-se e pegou nele. Continuou a leitura: “A apatia tomou conta de si? Tem dificuldade em se expressar? Deixou de ler? Oferecemos-lhe uma consulta médica gratuita, só hoje! Venha conhecer o poder da palavra!”
Inicialmente, o senhor Miguel pensou tratar-se de propaganda religiosa, ou de algum esquema em pirâmide. Todavia, a curiosidade venceu a desconfiança. Arrastou-se até à morada indicada no folheto. Estranhamente, ficava mesmo nas traseiras da biblioteca municipal. Mais inesperadamente, ainda, apesar de as consultas serem gratuitas, não havia nenhuma fila para a consulta. Só uma simpática rececionista, que o acolheu com um sorriso primaveril.
- O doutor Rui está à sua espera, senhor Miguel – disse a rececionista, conduzindo o atónito paciente até à sala, onde o esperava um indivíduo de bata branca e estetoscópio.
O médico convidou o doente a sentar-se, enquanto o cumprimentava:
- Seja bem-vindo, senhor Miguel! Por favor, conte-me de que se queixa.
Surpreendido com toda aquela afabilidade, o senhor Miguel contou-lhe todos os sintomas de que padecia:
- Sr. doutor, sinto-me apático. Deixei de fazer aquilo que gostava: de ler, de escrever, de conviver com os amigos. Não sei o que tenho… Penso que terei de fazer um check-up geral…
- Hummm, deite-se ali na marquesa, para o poder examinar. – o médico começou por examinar os olhos, a boca, os ouvidos, e depois palpou o abdómen e as costas – senhor Miguel, pode levantar-se e sentar-se de novo na cadeira.
Dirigiu-se ao computador e teclou algumas frases, enquanto o doente se compunha e sentava.
- Senhor Miguel, tenho de lhe comunicar que é possuidor de uma doença rara, e fulminante, em estados avançados! Você ainda se encontra num estado inicial, sendo completamente tratável! O senhor tem o chamado “síndrome da palavra sufocada”. Passo a explicar: o senhor sente vontade de criar e declamar um poema, mas resolve ignorar esse seu desejo, pois pensa que ninguém o quererá escutar. Anseia escrever um conto, mas desiste, pois ouvirá muita critica negativa e mal direcionada. Ora bem, no seu cérebro, no seu coração, nos seus rins, vão-se acumulando estas palavras, que foram sufocadas à nascença. Abortadas, estas palavras apodrecem no seu íntimo, infectando e corroendo o seu “eu interior” como gangrena, como um cancro. Roubam-lhe os sonhos e incendeiam-lhe pesadelos. Minam a sua confiança e destroem a sua saúde. Esse é o poder negativo das palavras, quando sufocadas por muito tempo, no íntimo de cada ser humano.
- Curiosa explicação, caro doutor! – replicou Miguel, procurando abarcar toda a informação que o médico facultava. - E qual a forma de recuperar deste síndrome? Qual o tratamento?
- O tratamento, que lhe aconselho, é muito simples e utiliza o poder positivo e libertador da palavra: no primeiro dia, abra um livro de poesia e leia somente o primeiro verso. Retenha as palavras dentro de si e medite nelas, enquanto inspira e expira. Depois, diga o verso, em voz alta, deixando sair as palavras, saboreando-as com comoção, sentindo-as com o coração. No segundo dia, leia do primeiro até ao terceiro verso. Inspire e expire, e diga os três versos, em voz alta, sem pressas e saboreando cada palavra. Vá aumentando a dose, gradualmente. Na semana seguinte, comece por ler um livro de prosa. Quando não estiver a ler, passeie com os seus amigos ou com a sua família, e fale sobre aquilo que tem aprendido através dos livros, trocando experiências. Trocando palavras. Na terceira semana, continue com a leitura, e comece por escrever um verso, a seu contento. Vá aumentando, até que escreva uma estrofe, um poema, um rio de palavras vivas, transbordantes de poder. Na quarta semana, em paralelo com as leituras e os poemas, experimente elaborar um curto texto narrativo. Escreva, por exemplo, sobre a sua doença, sobre as suas melhoras e sobre o poder da palavra.
- Só isso, doutor? – estranhou o senhor Miguel.
- Acha pouco? – o médico sorriu – Siga os meus conselhos. Se não sufocar as palavras, vai ver que recupera por completo. Depois, meu caro, não pare, pois o poder da palavra é seu. Use-o livre, mas conscientemente.

O senhor Miguel agradeceu o diagnóstico, sentindo-se mais animado. Despediu-se do médico e da rececionista. Saiu para a rua e andou uma dezena de metros. Lembrou-se que lhe faltava o contacto telefónico (que não constava do prospeto), para quando necessitasse de nova consulta e voltou atrás. Estranhamente, o consultório já não estava lá. Ninguém, a quem perguntou, conhecia aquele local, nem aquele médico. Mas, o certo é que seguiu a prescrição dada e ficou curado do seu mal, o tal “síndrome da palavra sufocada”.


2º Prémio
"Palavras que germinam no silêncio"
Jorge Alexandre da Costa Rodrigues
(Parada de Cunhos, Vila Real)
Apoio: Novo Banco, S. A.

De um lado da batalha erguiam-se altaneiras as palavras, alinhadas, cada uma com a sua posição estrategicamente bem definida. Marte parecia estar com elas bem como todos os deuses, heróis, santos e semideuses que fazem da arte bélica a entretela dos seus corações. E ainda, mais que todas as divindades do Olimpo, erguia-se imponente o sol. Esse fazia projectar a sombra das palavras no campo de batalha com tal intensidade que só a sua presença se tornava intimidatória. E com a sombra vinha o eco… era como se de um discurso verrinoso se tratasse, mas um discurso fluente, bem articulado, sem erros ortográficos, com uma caligrafia exemplar, a sintaxe bem arquitectada… enfim, tudo preparado para se incendiar num púlpito ou numa qualquer tribuna. Os verbos eram os arcos e os sujeitos as flechas, os nomes próprios espadas e os comuns as adagas. Os adjectivos escudos e os advérbios couraças, as interjeições baluartes e as preposições sentinelas. Os pronomes eram os pórticos e as conjunções as ameias, os prefixos os aríetes e os sufixos as catapultas. As linhas estribos e esporas e a acentuação era o elmo. Do lado inimigo, à frente de uma coluna de nuvens, caminhava implacável o silêncio. Nem o brilho do sol, vindo do campo adversário, lhe ofuscava a vista nem a sombra das palavras agigantada na encosta da colina o intimidava. Marchava como uma quadrilha de salteadores numa noite de breu sobre uma cama de gélida neve. E mesmo os passos da marcha marcados na candura do alvo manto desapareciam. Eram como que cobertos pela mesma queda de neve que transformava num silêncio de morte o próprio bafo da respiração dos soldados. Era silêncio, breu, treva, noite, escuridão, morte, esquecimento… tudo em marcha contra as palavras bem alinhadas: som, luz, claridade, dia, vida, lembrança… Mas, claro, as palavras não podiam ficar eternamente à espera da investida do silêncio no topo da colina. É então que se ouve um grito de guerra. Ecoou sobre o adamado vale sobranceiro, onde se adivinhava vir a ser o campo de batalha e espalhou-se por toda a terra, sendo travado apenas pela orla de bruma que ladeava a colina já dominada pelo silêncio. Entretanto as duas forças inimigas desciam fugazes as opostas colinas. Rumavam àquele vale imenso, àquela planície de Megiddo, àquele campo de tantas batalhas preparado para a derradeira, a do Armagedom, aquela que agora se perfila, aquela em que as palavras e o silêncio se degladiam, aquela em que luz e trevas se confrontam, 2 aquela na qual noite e dia põem fim ao seu ciclo de fuga eterna e se apresentam frente-a-frente. Mas… o medo, a insegurança, o desconforto, o nervosismo… tudo parece apossar-se das palavras desarticulando aquela formação beligerante. Constroem-se frases com uma sintaxe descoordenada, criam-se orações sem verbo, ouve-se a revolta de sujeitos subentendidos, apostos julgam-se complementos diretos… é a desordem no meio do caos. Por outro lado, o silêncio, deixa quebrar aquela barreira impenetrável, enche-se de ruídos, barulhos fortes, sons estridentes… Poeira! Nuvens de poeira erguem-se sobre aquele holocausto onde dois exércitos se fundem em fundada barafunda. Tudo é reduzido a pó e cinza naquele campo de batalha. O discurso já desarticulado e dissecado deixa de encontrar espaço e canal, para a sua mensagem distorcida, naquele silêncio que se finava. O silêncio perde a capacidade de deixar ecoar as palavras no seu seio e o espaço para que um discurso possa fluir sem interferências. Entretanto, no derradeiro minuto, dos destroços ergue-se uma conjunção: “Mas… que o isto a ser vem?” e logo o verbo no infinitivo a retorquir: “eu venho no fim da frase.” Mas, Isto, o pronome demonstrativo acrescenta: “como complemento direto esse lugar deve ser meu.” Em pouco tempo todos proferiam a mesma frase: “mas o que vem a ser isto?” Estava dado o primeiro passo para a busca da ordem no meio do caos. Sentaram-se todos nas pequenas elevações de terra e nos escolhos dispersos pelo antigo campo de batalha e assim se foram agrupando. As palavras juntas iam formando orações e com elas criando frases mais complexas. Nos intervalos dava-se voz ao silêncio para que todos pudessem mastigar docemente cada opinião. Começava assim o conluio que haveria de demorar três dias e três noites, até que ao romper da terceira aurora fosse promulgado o seguinte édito a divulgar por toda a terra: Assim como as noites se sucedem aos dias e como as trevas sucedem à luz, num ciclo infindável e ininterrupto, também as palavras e o silêncio têm que se articular deixando, cada um, espaço para que o outro possa agir. Sempre que alguém falar façao como uma sementeira de flores no campo fecundo do silêncio. Sempre que se fizer silêncio seja para deixar germinar o imenso Poder da Palavra.


3º Prémio
"O caçador de palavras"
Paula Cristina Direito Rabaça
(Manteigas)
Apoio: Junta de Freguesia de Redondo

Era um jovem caçador de palavras. Nas horas vagas, saía de bloco discreto no bolso e caneta escondida na lapela, para caçar palavras nos centros comerciais, em bancos de jardim, em jogos de futebol e conferências, no metro e no eléctrico, na rua, até no cemitério. Não o seduziam as palavras dos dicionários e das enciclopédias. Não tinham movimento nem vida e por isso não lhe davam a ilusão de conquista!
Quando chegava a casa, com duas ou três (nunca mais de cinco, na melhor das caçadas), iniciava o ritual de dissecação: observava a palavra a partir de todos os ângulos, explorava o seu étimo, juntava-lhe sinónimos e antónimos, denotações e conotações, num exercício de semântica que faria inveja a qualquer estudioso de linguística. Passava horas com cada "presa" até que, já extenuado, se dava por satisfeito. Abria, então, o velho álbum e, num misto de ternura e reverência, inscrevia a palavra eleita.
O álbum crescia a ritmo lento e nele se catalogavam espécies várias, como se de um herbário de vocábulos se tratasse: palavras-transparência, palavras-engano, palavras-música, palavras-sonho...
Na categoria das "palavras transparência", por exemplo, colocava as que se revelam à primeira apresentação e sem subterfúgios, as que nada escondem do que sentem... "Só" parecia-lhe uma dessas palavras: transparentemente solitária, com a brevidade e a secura dos que não têm ninguém a seu lado.
"Palavras-sonho" também abundavam no álbum. "Enamorar-se" era uma delas, um verbo vagamente doce, de contornos magnéticos, mas ainda indefinidos como uma ilusão.
Aprisionando palavras como se delas passasse a ser dono e senhor, o jovem caçador alimentava a bizarra convicção de ser tanto mais poderoso, quanto mais as acumulasse...

Quando naquele final de Outono, à porta da Universidade, se cruzou com ela, viu-se arrastado para a sua derradeira caçada.
Tudo nela era uma explosão de vida: os longos e coloridos vestidos, os caracóis volumosos e soltos, os gestos largos e expressivos. Ria alto, gesticulava com graça e caminhava como bailarina em palco iluminado. Os olhos, de um azul quase impossível de sustentar, dançavam como ela, a cada passo, em cada encontro, em todas as direcções. Nunca mais o jovem caçador voltou a caçar nos espaços usuais ... Estreou um álbum novo, em cuja capa escreveu o nome dela. Renata. Uma "palavra-esperança", que lhe inspirava desejos de renascer e promessas de futuro...
À volta de Renata, o jovem caçador via esvoaçarem, como borboletas selvagens, todas as palavras que nunca ousara catalogar e que agora inscrevia, ávido de conquista, no novo álbum: fôlego, sensualidade, corpo, paixão, eternidade... E o coração ficou-lhe suspenso, em permanente caçada, porque todas as palavras lhe falavam dela, mas nenhuma era, ainda, suficientemente poderosa para dizer daquele sentimento que crescia louco e incomensurável dentro do seu peito... Haveria de encontrar A Palavra para aquilo que sentia. Haveria de ser uma "palavra-carne", pensava! Das que não têm existência autónoma como vocabulário e que só se fazem verdade, no corpo, nos ossos e na vida de alguém... Uma palavra "em carne viva" que inscreveria no álbum e lhe ofereceria depois, para a impressionar e irremediavelmente prender.

Assim andou, nesta busca, dias após dias... O Outono cedeu permissão ao Inverno e, depois deste, a Primavera fez-se anunciar no verde fresco dos jardins da cidade.
E como "um dia é da caça outro do caçador"... acordou uma manhã capturado pela palavra Amor. A Palavra.
Sem hesitações, agarrou decidido no álbum e correu à universidade. Procurou-a nos corredores, nas salas, por todos os recantos. Deambulou pelas ruas mais próximas, com A Palavra a arder-lhe no peito, a querer saltar cá para fora, e o álbum debaixo do braço, quase a desfolhar-se... Em vão a procurou.
Ao cair da tarde, cansado, entregou o corpo desalentado a um banco de jardim e... avistou-a ao longe. Sem mais, correu até ela, desajeitado. Tinha pressa de lhe oferecer o álbum, de encerrar a caçada, de festejar o poder d'A Palavra e inaugurar, com ela, o Amor. Mas quando se aproximou, viu-a de mãos pousadas noutras mãos e olhos presos noutros olhos... envoltos num silêncio tão íntimo que palavra alguma seria capaz de interromper...

Conta-se que o jovem caçador se retirou, sem mais. E que dos seus álbuns saíram esvoaçando, livres como borboletas, todas as palavras que até então aprisionara.
Todas, excepto uma. A derradeira, a que Renata não chegara a receber, a única que em vez de verbo, foi carne, que em vez de vocábulo, foi vida...
Era Primavera, tempo de aprender que o amor, tal como as palavras, não se impõe, não se agrilhoa e de nada vale se não for dádiva livre do que somos!

(O presente texto foi escrito sem ter em conta o novo acordo ortográfico)     


Menção Honrosa
"Para ti"
Vera Márcia dos Santos e Silva
(Águas Santas, Maia)

Pergunto-me, muitas vezes, se te recordarás dos teus primeiros anos de vida. Se te lembrarás dos beijos repenicados, dos abraços apertados, de corrermos juntas e felizes de mão dada pela rua. Das gargalhadas em uníssono e da minha sensação de conforto e paz crendo que uma criança sorridente é sempre uma criança feliz. Das perguntas persistentes e das minhas respostas pacientes, vezes sem conta: “São flores, minha amora, são flores”. São árvores e folhas. São automóveis, motas e bicicletas. Casas, muros e pessoas. Sapatos, calças e chapéus. Ah… um mundo inteiro por descobrir! Pergunto-me se te recordarás do sufoco dos meus braços na ânsia de suspender o tempo num instante perfeito ou das minhas lágrimas soltas quando te surpreendo a percorrer, lenta e sossegadamente, o meu rosto com olhos perscrutadores. Se sentiste na minha voz a emoção pelo primeiro passo, o orgulho pela primeira palavra proferida, a ternura pelos raros beijos recebidos. Todos os dias algo novo, fascinante, único e indescritível. Pergunto-me se o tempo tornará banais os teus passos, as tuas palavras, os teus beijos ou a ausência deles. Pergunto-me se te recordarás da minha falta de discernimento quando não interrompo o trabalho para te acudir quando chamas por mim. Se compreenderás as minhas ausências, os meus ciúmes loucos quando preferes outro colo ao meu, os meus amuos quando te peço beijos e não dás. Se te recordarás das vezes que invades o escritório da nossa casa e vens pedir a minha mão para brincar ou pousar livros em cima da secretária para os desfolharmos juntas, esticando os braços pedindo-me colo. Se te recordarás do meu riso mal disfarçado quando tropeças, cais e te levantas num ápice, quando pergunto se estás magoada e logo respondes, sem qualquer hesitação, a esfregar uma perna ou um braço: “Não!”. Lembras-te quando tinhas pavor do mar? Corrias desesperada pela duna acima em direcção ao porto seguro da toalha e do guarda-sol. Eu corria atrás de ti cheia de vergonha por não te conseguir alcançar, mas gravei na memória o dia em que esse medo se evaporou. Desconfiada, olhavas o mar ao longe e os meninos mais velhos a chapinharem na linha da rebentação. Pelo canto do olho vi crescer em ti uma determinação e uma vontade até então desconhecidas. Puxaste pela minha mão e obrigaste-me a percorrer o areal todo numa perfeita linha reta, sem distrações ou desvios pelo caminho. Só paraste quando sentiste os joelhos submersos e, durante alguns segundos, ficaste imóvel a sentir a suave carícia da ondulação da água nas pernas. 2/2 Costumo dizer que quero ser como tu. Mas, lá no fundo, sei bem: nunca serei igual a ti. Forte e determinada. Louca e destemida. Rápida a encarar os medos de frente, a correr em direcção às ondas, mesmo com passos incertos e pernas bamboleantes, tropeçar e cair nos buracos, levantar, sacudir a terra das mãos, limpar as feridas e dizer, com um sorriso rasgado: “Não dói nada”. Por momentos desejo secretamente que o tempo passe mais depressa só para ver como serás daqui a cinco, dez, quinze anos. Se ainda vais chamar por mim, sorrir-me, abraçar-me e puxar-me pela mão para brincar ou ler livros. Se ainda procurarás no meu rosto as respostas para as tuas dúvidas. Se ainda me perguntarás com avidez incontida “O que é isto?” até à exaustão das palavras ou se os teus horizontes já serão maiores do que os meus. Um dia conhecerás a minha luta contra o tempo pelos anos perdidos à tua procura e o quanto insisti, insistimos, para ter o privilégio de te conhecer e a obrigação de te fazer feliz. Não saberás, contudo, quantas vezes foste o sol radioso nos dias cinzentos, quantas vezes os teus sorrisos afastaram preocupações e acalmaram ansiedades, quantas vezes meia dúzia de palavras indecifráveis significaram muito mais do que mil discursos elaborados. Porque todas as palavras do dicionário não serão nunca suficientes para descrever o verdadeiro poder da palavra “Mãe”.



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O título do texto vencedor do Prémio Hernâni Cidade 2015, da autoria de João Manuel da Silva Rogaciano, apareceu erroneamente nesta página como “O síndrome do senhor Miguel”, devendo aparecer como “síndrome do senhor Miguel.” A quem assinalou a falha o nosso agradecimento.
O júri do prémio.

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