XIX PRÉMIO LITERÁRIO HERNÂNI CIDADE
Tema
Livre
Modalidade
Crónica
Trabalhos Premiados
1º Prémio
Apoio: Município de Redondo
«CIVILIZOPATIA»
José Carlos Lopes Nascimento
(Montemor-o-Novo)
É imensamente curioso, e eu pasmo para isto rindo de mim mesmo, que nós, «homens civilizados», tenhamos a teima de nos vestirmos… Quer dizer: não a circunstância em si, que essa é naturalíssima, mas sim a de nos vestirmos segundo padrões de civilidade ou sociabilidade. De facto, toda a ocasião parece suficientemente solene para que nos tapemos com «sonho de linho e algodão», e por aí andemos como tontos; sim, tontos em nada diferentes daquele do manicómio que põe as meias nas orelhas e as calças nos braços; tontos em nada diferentes daquele senão pela preocupação estética…
Digo isto por quê? É que num destes dias andava a passear-me, quando me surgiu a improbabilidade de um daqueles «homens indígenas» vir parar a uma destas ruas citadinas por qualquer chato desígnio do Destino. Ora, tentando interiorizar a sua reacção, imaginei o que sentiria ele quando se apercebesse, por exemplo, da algazarra desenfreada dentro das lojas – os modernos templos de culto social; ou das pessoas a passearem com os «fantasmas de pele» sobre o corpo, tal qual um chefe-guru, mas com certeza mais desagradavelmente perfumadas; ou dos berloques a gritar por todo o sítio a mood do dia das meninas que andam parece que a rodar as saias da alma; ou das peregrinações semi-classicamente padronizadas aos spots tão marteladamente aculturados; ou se soubesse dos retoques orgânicos contra a gravidade e a genética; ou… E, estranhamente, interiorizando tudo isto, me deu vontade de pasmar, de pasmar com um absurdo de murro no estômago. E de rir em seguida. E de pensar, afinal, como eu e todos os meus «vizinhos civilizacionais» andamos doentes…
Vejamos: se pensarmos na razão que leva alguns homens a não usarem senão um trapo em volta da cintura (e quando é!), à primeira vista parece que é por falta de civilização. E de facto, à segunda assim é também. Eles não têm «civilização», não têm «cultura»… Sim, é verdade: lá têm alguns «fantasmas de pele» diferenciadores; lá têm alguns berloques simbólicos para estatutos sociais; também se pintam, bem visto! Mas comparar pequenos referenciais de organização à quantidade de caprichos e subliminaridades que a «civilização» nos incute, é de facto irrisório.
Contudo, em verdade, tudo isto que digo não é censura ou desprezo; na maior sinceridade, isto é apenas um inegável sinal de que andamos doentes – «doentes de civilização»… É que nós, «civilizopáticos», achamos mal que as pessoas andem nuas pelas cidades porque temos a alma atafulhada de «conceitos-casaco» e «camisas axiológicas», mais «cintos comportamentais», «etiquetas-collants», «sapatos educacionais» e sabe-se lá mais o quê. É que ao invés de usarmos a «civilização» para nos «despir» (das intolerâncias, dos mitos, da hipocrisia e da ineficiência), deixamo-nos «vestir» pelos seus equívocos. E se vemos alguém menos «vestido», ou só «vestido» com o corpo – no fundo, alguém que não caiba nos nossos «guarda-roupas» –, logo achamos «indecente», logo achamos «incivilizado»…
A verdade é que alguns homens não se vestem porque trazem a alma menos «vestida» do que outros. Alguns podem não saber que a Lua anda à volta da Terra por causa da Gravidade, mas os outros, sabendo isso, que sabem afinal?... Alguns pensam que foi o deus da vida e da morte «abé-chuca-qualquer-coisa» que lhes levou o filho durante a noite, quando afinal foi uma pneumonia – que tratada, não tinha sido fatal. Já outros têm medo que os filhos morram de pneumonia ainda antes de eles a terem, e então, lhes metem químicos pelo «juvenil bucho» – quais bombas radioactivas! – até eles tossirem a saúde que tinham… Os «nus de civilização» talvez sejam homens mais sadios do que nós – pelo menos, não tão doentes... É verdade que se lhes dissermos que a morte não é trazida pelo tal «abé-chuca», eles não acreditam. Mas se depois eles nos retrucam que o chefe guru lhes diz que a morte é apenas uma passagem porque a «Essência» não é perecedoura, nós os rotulamos de supersticiosos ignorantes da Ciência… (E de facto, só aqui entre nós, que os mercados financeiros tenham «Razão», isso eu percebo, mas acreditar no «abé-chuca», tenham paciência!…)
A verdade… bom, a verdade é que a maioria das características das sociedades primitivas é igualmente certa para as sociedades civilizadas. Vivemos (continuamos a viver) segundo modelos míticos, maniqueístas e etnocêntricos. Esquecemo-nos de que quando adoramos os liberalismos e os socialismos, as democracias europeias e as constituições americanas, o progresso e a modernidade (ou a tradição e a continuidade); quando preferimos até os «hippies» aos «gravatinhas»... não estamos senão a criar a um «deus» e a entregar nas suas mãos a nossa vida; não estamos senão a «vestir-nos» dele e a oferecer-lhe a nossa vontade.
Afinal, de que me vale poder escrever este texto se a escrita for só um traje para me «civilizar» mais? E de que me vale a percepção deste facto se ele não for um passo real para perceber isto da «Humanidade»?... No fundo, com seriedade: que diferença existe ao certo entre o «abé-chuca» e as farmácias?
Tenho a sensação de que nunca passaram tantos aviões como hoje, de que nunca os aviões foram tão ruidosos. Passariam discretamente, com as turbinas embrulhadas em algodão, das outras vezes, ou eu não os ouvia porque estava distraído? Porque é que hoje não consigo ignorá-los? Enchem todo o céu que me cobre, que me contém: casca de ovo, quarta pele, depois da terceira, que é o meu quarto, e da segunda, que é a minha roupa. Saturam-no, riscam-no, rasgam-no, desgastam-no, abrem sulcos na sua superfície (o céu terá superfície?), sulcos iguais aos que os glaciares abrem nas rochas das regiões polares. Sente-se a força que fazem para progredirem e escaparem à implacável força da gravidade.
Dentro em breve, calculo, os aviões substituirão os outros veículos, os terrestres e os aquáticos, nas nossas preferências, tornar-se-ão mais acessíveis, começaremos a utilizá-los para percorrer distâncias insignificantes que poderíamos percorrer de automóvel ou a pé, mas nunca tão depressa: de casa para o local de trabalho, do centro das cidades para os subúrbios, do princípio até ao fim de uma rua. Um futuro cada vez mais aéreo, mais etéreo.
Atrás de um avião, passa logo outro, em fila indiana. Logo, logo, não, respeitam um intervalo de segurança. É provável que seja o mesmo avião, às voltas, à nora, corrigindo a rota, tentando entrar ou sair de um túnel, ladear bandeirolas, iludir os radares, escarnecendo dos controladores que lhe dão indicações a partir da torre de controlo, desviado por piratas, pilotado por amadores, por acrobatas, regressando para se reabastecer ou para ser reparado, depois de dar a volta ao mundo em vinte, dez, cinco minutos. É também provável que passem apenas na minha cabeça: de um ouvido para o outro, mas por dentro, por um fio; de um hemisfério do cérebro para o outro, de neurónio para neurónio, de fibra para fibra, de córtex para córtex. Um pulo, um choque, ligando um som a uma imagem, ligando os sons e as imagens a várias memórias.
Tenho a sensação de que passam todos na mesma direção: saem de um buraco do céu azul-bebé à minha direita, que logo se fecha, e entram num buraco do céu à minha esquerda, que nem se chega a abrir. Como a agulha que conduz a linha ao longo da bainha, traço abaixo, traço acima do tecido. Como os golfinhos: semicírculo abaixo, semicírculo acima da água. Curvatura convexa visível. Curvatura côncava invisível. Passam, portanto, de oeste para leste, acompanhando o movimento de rotação da terra, calculo, porque estou virado para o rio Tejo, de costas para a metade norte de Portugal. Perdoa-me metade norte de Portugal, não te quero mal. Ou estarei de costas para o rio Tejo? Se o meu sentido de orientação estiver correto, estes aviões não estão no princípio, mas no fim ou a meio (quem diz «a meio», diz «a um ou a dois terços…») das suas viagens; nenhum deles parte, todos chegam de longe, dos Açores, da América do Norte, da América Central, da América do Sul, e vão aterrar aqui perto, na Portela. Partirão depois, com um novo magote de passageiros? Sobrevoaram o Atlântico? Sete horas, desde Nova Iorque? Oito horas, desde Caracas? Doze horas, desde Lima, no Peru? Dez horas, desde o Rio de Janeiro? Mais coisa, menos coisa. Sei que os meus cálculos estão errados e que nunca os irei confirmar. Não interessa. Quilómetros e mais quilómetros, altitudes e mais altitudes, céus e mais céus.
Estou sentado no meu quarto, virado para o rio Tejo. Os aviões passam por cima de mim, tão depressa e, no entanto, tão lentamente que a minha mão poderia ultrapassá-los várias vezes se lhes acenasse. Milhares de pessoas passam por cima de mim, pessoas que eu não vejo (embora, provavelmente, parecidas com aquelas que vejo, parecidas comigo), que não veem através dos vidros senão um labirinto de telhados e de estruturas achatadas, entre algumas nuvens, colunas de fumo, uma asa, uma turbina. Pessoas que nunca aqui estiveram: norte-americanos, peruanos, brasileiros, venezuelanos… Nacionalidades e mais nacionalidades. Dialetos e mais dialetos. Fisionomias e mais fisionomias. Portugueses que regressam. Pessoas para quem Lisboa é apenas um ponto de passagem, uma escala, um aeroporto. Terá este capacidade para receber tantos aviões? Serão as suas pistas de aterragem assim tão compridas, os seus hangares assim tão largos?
Estará Lisboa a ser renovada, de vinte em vinte minutos, de dez em dez, de cinco em cinco? Todos os lisboetas (que não são lisboetas, mas nova-iorquinos, cariocas, limenhos, caraquenhos…) com as malas aviadas e os bilhetes pré-comprados, sentados nos seus quartos, à escuta, à espera, ou correndo para a Portela para embarcarem. Quando sair à rua, não encontrarei uma única cara familiar.
Nós, os pobres, sabemos bem qual é o nosso lugar no mundo. Entendemos sem questionar qual é o papel que nos cabe na ordem das coisas, especialmente aqui, neste cantinho da Europa, com varanda privilegiada para o Atlântico.
Conhecemos ao pormenor todos os nossos deveres, pois o Governo há muito nos levou os direitos. Pois, já cá faltava a habitual criticazinha ao Governo.
Gritamos, como ninguém, aquilo que nos vai na alma para que todos saibam que, apesar de pobres, estamos aqui. Mesmo muito, muito pobres, para que não haja margem para qualquer tipo de dúvidas.
Assim, e para quem ainda não nos conhece, cabe-nos dar também a conhecer ao mundo três das principais características com que, por cá, se faz um pobre português.
1ª - Calendário do queixume. Pobre que é pobre em Portugal deve seguir sempre religiosamente o calendário do queixume no qual se indica que todos os dias são bons para se queixarem do Governo, situação económica híper – desfavorável, da crise e da Tróika, menos nos dias em que joga a Selecção, no Carnaval, na Páscoa, no Natal, na Passagem de ano, nos feriados, e, especialmente, no Verão, época durante a qual, pobre que é pobre que se preze deve pegar na família e rumar ao Algarve para entupir o maior número de praias e hotéis possível.
2º - O show off . Pobre que é pobre em Portugal, mostra-se! Usa roupas de marca, algumas, talvez a maioria, compradas na feira ao preço da chuva e montado no topo de gama, em segunda, terceira ou quarta mão, com umas boas décadas em cima, frequenta os bares da moda e os locais do social. Bebe o mesmo copo de qualquer coisa durante a noite inteira e exibe-o pavoneantemente como se fossem vários reffils, entre dois dedos de conversa durante os quais, surpresa, se queixa de que não tem dinheiro!
3º - As dívidas. Pobre não é pobre a sério se não tiver dívidas. A primeira, a renda da casa. Aquela que se fica a dever meses e meses porque não se tem dinheiro para pagar. Casa, já agora, à frente da qual está estacionado o topo de gama anteriormente referido.
Sem esquecer as contas do gás, da água ou da luz que muitas vezes ficam por pagar. Talvez por isso, à falta de água ou electricidade, sejam obrigados a sair de casa, tentando entreter o tempo noutro lado, quiçá na companhia de uma bebida. Bebida essa que, como já se disse, é sempre a mesma e leva horas a deixar o copo.
E assim andamos, nós os pobres, entregues, à desgraça neste país. Já cá faltava a palavra desgraça, sem a qual não seria possível ilustrar, com precisão gráfica, aquilo por que nós, os pobres, temos de passar.
Para terminar, quero apenas partilhar algo que no outro dia ouvi um pobre dizer e que me deixou profundamente repugnada. Disse que pintou um quadrado azul no quintal para que, do Espaço, pensem que ele tem piscina. Ora, este pobre é um pobre falso! Toda a gente sabe que pobre que é pobre em Portugal fotografa a piscina do vizinho e coloca no facebook a dizer que é sua!
2º Prémio
Apoio: Novo Banco, S. A.
«Nos céus da Cidade»
Luís Pedro Batista de Araújo e Castro
(Amadora)
De vinte em vinte minutos, passa um avião. Ou de dez em dez minutos. Ou de cinco em cinco. Passam aviões o dia todo. Passam durante a noite, com curtas interrupções, por cima de mim. Nem sempre à mesma altitude, calculo, algures na troposfera, onde se formam as nuvens, a neve, a chuva, onde nada se enraíza, onde só as bruxas voam nuas (e uma determinada espécie de abutres), mas tão acima que, felizmente, não corro o risco de ser esmagado ou atingido por um dos seus trens de aterragem; tão acima que a deslocação do ar não faz oscilar um só dos meus cabelos, embora eu sinta tremer o chão, o teto, as paredes. Serão os meus cabelos mais sólidos do que o aço e o cimento?
Tenho a sensação de que nunca passaram tantos aviões como hoje, de que nunca os aviões foram tão ruidosos. Passariam discretamente, com as turbinas embrulhadas em algodão, das outras vezes, ou eu não os ouvia porque estava distraído? Porque é que hoje não consigo ignorá-los? Enchem todo o céu que me cobre, que me contém: casca de ovo, quarta pele, depois da terceira, que é o meu quarto, e da segunda, que é a minha roupa. Saturam-no, riscam-no, rasgam-no, desgastam-no, abrem sulcos na sua superfície (o céu terá superfície?), sulcos iguais aos que os glaciares abrem nas rochas das regiões polares. Sente-se a força que fazem para progredirem e escaparem à implacável força da gravidade.
Dentro em breve, calculo, os aviões substituirão os outros veículos, os terrestres e os aquáticos, nas nossas preferências, tornar-se-ão mais acessíveis, começaremos a utilizá-los para percorrer distâncias insignificantes que poderíamos percorrer de automóvel ou a pé, mas nunca tão depressa: de casa para o local de trabalho, do centro das cidades para os subúrbios, do princípio até ao fim de uma rua. Um futuro cada vez mais aéreo, mais etéreo.
Atrás de um avião, passa logo outro, em fila indiana. Logo, logo, não, respeitam um intervalo de segurança. É provável que seja o mesmo avião, às voltas, à nora, corrigindo a rota, tentando entrar ou sair de um túnel, ladear bandeirolas, iludir os radares, escarnecendo dos controladores que lhe dão indicações a partir da torre de controlo, desviado por piratas, pilotado por amadores, por acrobatas, regressando para se reabastecer ou para ser reparado, depois de dar a volta ao mundo em vinte, dez, cinco minutos. É também provável que passem apenas na minha cabeça: de um ouvido para o outro, mas por dentro, por um fio; de um hemisfério do cérebro para o outro, de neurónio para neurónio, de fibra para fibra, de córtex para córtex. Um pulo, um choque, ligando um som a uma imagem, ligando os sons e as imagens a várias memórias.
Tenho a sensação de que passam todos na mesma direção: saem de um buraco do céu azul-bebé à minha direita, que logo se fecha, e entram num buraco do céu à minha esquerda, que nem se chega a abrir. Como a agulha que conduz a linha ao longo da bainha, traço abaixo, traço acima do tecido. Como os golfinhos: semicírculo abaixo, semicírculo acima da água. Curvatura convexa visível. Curvatura côncava invisível. Passam, portanto, de oeste para leste, acompanhando o movimento de rotação da terra, calculo, porque estou virado para o rio Tejo, de costas para a metade norte de Portugal. Perdoa-me metade norte de Portugal, não te quero mal. Ou estarei de costas para o rio Tejo? Se o meu sentido de orientação estiver correto, estes aviões não estão no princípio, mas no fim ou a meio (quem diz «a meio», diz «a um ou a dois terços…») das suas viagens; nenhum deles parte, todos chegam de longe, dos Açores, da América do Norte, da América Central, da América do Sul, e vão aterrar aqui perto, na Portela. Partirão depois, com um novo magote de passageiros? Sobrevoaram o Atlântico? Sete horas, desde Nova Iorque? Oito horas, desde Caracas? Doze horas, desde Lima, no Peru? Dez horas, desde o Rio de Janeiro? Mais coisa, menos coisa. Sei que os meus cálculos estão errados e que nunca os irei confirmar. Não interessa. Quilómetros e mais quilómetros, altitudes e mais altitudes, céus e mais céus.
Estou sentado no meu quarto, virado para o rio Tejo. Os aviões passam por cima de mim, tão depressa e, no entanto, tão lentamente que a minha mão poderia ultrapassá-los várias vezes se lhes acenasse. Milhares de pessoas passam por cima de mim, pessoas que eu não vejo (embora, provavelmente, parecidas com aquelas que vejo, parecidas comigo), que não veem através dos vidros senão um labirinto de telhados e de estruturas achatadas, entre algumas nuvens, colunas de fumo, uma asa, uma turbina. Pessoas que nunca aqui estiveram: norte-americanos, peruanos, brasileiros, venezuelanos… Nacionalidades e mais nacionalidades. Dialetos e mais dialetos. Fisionomias e mais fisionomias. Portugueses que regressam. Pessoas para quem Lisboa é apenas um ponto de passagem, uma escala, um aeroporto. Terá este capacidade para receber tantos aviões? Serão as suas pistas de aterragem assim tão compridas, os seus hangares assim tão largos?
Estará Lisboa a ser renovada, de vinte em vinte minutos, de dez em dez, de cinco em cinco? Todos os lisboetas (que não são lisboetas, mas nova-iorquinos, cariocas, limenhos, caraquenhos…) com as malas aviadas e os bilhetes pré-comprados, sentados nos seus quartos, à escuta, à espera, ou correndo para a Portela para embarcarem. Quando sair à rua, não encontrarei uma única cara familiar.
3º Prémio
Apoio: Junta de Freguesia de Redondo
«Nós, os pobres.»
Carla Patrícia Pires Martins
(Evoramonte)
Nós, os pobres, sabemos bem qual é o nosso lugar no mundo. Entendemos sem questionar qual é o papel que nos cabe na ordem das coisas, especialmente aqui, neste cantinho da Europa, com varanda privilegiada para o Atlântico.
Conhecemos ao pormenor todos os nossos deveres, pois o Governo há muito nos levou os direitos. Pois, já cá faltava a habitual criticazinha ao Governo.
Gritamos, como ninguém, aquilo que nos vai na alma para que todos saibam que, apesar de pobres, estamos aqui. Mesmo muito, muito pobres, para que não haja margem para qualquer tipo de dúvidas.
Assim, e para quem ainda não nos conhece, cabe-nos dar também a conhecer ao mundo três das principais características com que, por cá, se faz um pobre português.
1ª - Calendário do queixume. Pobre que é pobre em Portugal deve seguir sempre religiosamente o calendário do queixume no qual se indica que todos os dias são bons para se queixarem do Governo, situação económica híper – desfavorável, da crise e da Tróika, menos nos dias em que joga a Selecção, no Carnaval, na Páscoa, no Natal, na Passagem de ano, nos feriados, e, especialmente, no Verão, época durante a qual, pobre que é pobre que se preze deve pegar na família e rumar ao Algarve para entupir o maior número de praias e hotéis possível.
2º - O show off . Pobre que é pobre em Portugal, mostra-se! Usa roupas de marca, algumas, talvez a maioria, compradas na feira ao preço da chuva e montado no topo de gama, em segunda, terceira ou quarta mão, com umas boas décadas em cima, frequenta os bares da moda e os locais do social. Bebe o mesmo copo de qualquer coisa durante a noite inteira e exibe-o pavoneantemente como se fossem vários reffils, entre dois dedos de conversa durante os quais, surpresa, se queixa de que não tem dinheiro!
3º - As dívidas. Pobre não é pobre a sério se não tiver dívidas. A primeira, a renda da casa. Aquela que se fica a dever meses e meses porque não se tem dinheiro para pagar. Casa, já agora, à frente da qual está estacionado o topo de gama anteriormente referido.
Sem esquecer as contas do gás, da água ou da luz que muitas vezes ficam por pagar. Talvez por isso, à falta de água ou electricidade, sejam obrigados a sair de casa, tentando entreter o tempo noutro lado, quiçá na companhia de uma bebida. Bebida essa que, como já se disse, é sempre a mesma e leva horas a deixar o copo.
E assim andamos, nós os pobres, entregues, à desgraça neste país. Já cá faltava a palavra desgraça, sem a qual não seria possível ilustrar, com precisão gráfica, aquilo por que nós, os pobres, temos de passar.
Para terminar, quero apenas partilhar algo que no outro dia ouvi um pobre dizer e que me deixou profundamente repugnada. Disse que pintou um quadrado azul no quintal para que, do Espaço, pensem que ele tem piscina. Ora, este pobre é um pobre falso! Toda a gente sabe que pobre que é pobre em Portugal fotografa a piscina do vizinho e coloca no facebook a dizer que é sua!
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