8 de outubro de 2013

2013 - TRABALHOS PREMIADOS

XVIII PRÉMIO LITERÁRIO HERNÂNI CIDADE 2013

1º PRÉMIO
Apoio: Município de Redondo

Cenas de teatro

Personagens:
BERTOLD BRECHT
SAMUEL BECKETT
VÁRIOS TRANSEUNTES

Primeira cena

Bertold Brecht e Samuel Beckett encontram-se numa rua cheia de transeuntes apressados que se acotovelam quase inconscientemente. Parece um formigueiro. Um e outro – Brecht e Beckett – param e olham para uma parede grafitada onde se lê, em letras vermelhas e garrafais:

«SE HÁ FORMA DE ARTE QUE NECESSITE DE AMBIENTE SOCIAL É O TEATRO»

Beckett aponta o dedo magro.

BECKETT – Quem escreveu isto nunca fez teatro.

Brecht ajusta os óculos de aros pretos.

BRECHT – E no entanto é verdade. Também é verdade que a arte, quando boa, é sempre entretenimento.

BECKETT – E onde está o entretenimento? No ambiente social. Nos hábitos, na vida. A vida é um hábito. O teatro é vida e é morte. Ou seja, o teatro é tudo isso, define-se por uma linha onde vida e morte se confundem, umas vezes uma está por cima e a outra está por baixo e vice-versa. Oscilam e entrelaçam-se como duas cobras com cio.

BRECHT – Então, se viver é uma arte, a arte é uma cobra.

BECKETT – Duas cobras, a arte é vida e é morte. O teatro é isso tudo e precisa de olhos – ambiente social. O teatro precisa de olhos para que o espanto e o deslumbramento resultem, para que a oca, o hipnotismo das cobras deixe paralisados os espectadores e lhes arranque no fim as palmas, os gritos e os assobios, os risos e até os choros, todas as emoções que qualificam o ambiente social.

Alguns transeuntes param para ouvir a conversa, dificultando a marcha apressada dos restantes.

BRECHT – Eu cá acho que quem escreveu isto na parede foi um actor. Porque entre o actor e o público estão as palavras.

BECKETT – O actor gosta de ser engolido pela boca da noite e transformar-se em cuspidor de fogo vomitando palavras acesas.

BRECHT – É-lhe muito fácil ganhar asas, equilibrar-se nos arames suspensos sobre as cabeças pasmadas dos espectadores.

BECKETT – É-lhe muito fácil arreganhar as garras e dilacerar o texto em sangue, dá-lo a beber a quem padece de eterna sede.

Formou-se um círculo em redor dos dois dramaturgos. A rua ficou completamente entupida de espectadores. Ninguém arreda pé. Ninguém pestaneja.

BRECHT – Entre o actor e o público estão as máscaras. O actor é rei, rainha e bobo, cavaleiro de espada em riste.

BECKETT – É-lhe muito simples conquistar o reino do fingimento, é-lhe muito simples abalroar os castelos da indiferença.

BRECHT – O actor é um pistoleiro que dispara sobre o próprio coração, é um fora-da-lei que assalta todos os bancos de máscaras.

BECKETT – O actor é um bicho, um camaleão, um crocodilo – e verte lágrimas.

BRECHT – O actor é o amante de todos os espelhos.

BECKETT – Ri, chora, tem dor, mata e morre.

BRECHT – Morre, mas não morre.

Alguém bate palmas, num acesso de euforia. Foi contagioso: ouvem-se imensas palmas e assobios também.

BECKETT – Vês?... Ambiente social.

BRECHT – Fizemos teatro.

BECKETT – E não somos actores.

Os transeuntes dispersam, retomam a marcha de formigueiro apressado. Brecht e Beckett olham uma última vez a inscrição na parede.

BRECHT – Que vais fazer, Beckett?

BECKETT – Vou ficar por aqui à espera de Godot. E tu, Brecht?

BRECHT – Hum… Enquanto esperas, posso contar-te a vida de Galileu.

Segunda cena

(Ainda por escrever num próximo encontro entre os dois.)

Paulo Jorge Coelho Carreira

(Batalha)

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2º PRÉMIO 
Apoio: BPI e Junta de Freguesia de Redondo


MONÓLOGO DE VARANDA
(Ou um Equívoco Dramatúrgico)

Personagens:
Um homem
Três sujeitos

*

Quadro único
Um homem na varanda de um 1.º andar. Veste pijama e robe.
Figurantes deslocam-se pela rua. Quase noite.

HOMEM: (debruçado na grade da varanda, observando os transeuntes) [apático] Um vulto a
passar… Mais um outro que passa… E nenhum já passa…


(pausa)

[depois de um largo bocejo] Da varanda deste quarto conto vultos a passar…
Ora um, ora dois, agora três… Todos passam, mas tudo se mantém;
Contas e recontas, e tudo a bater certo…
Excepto para nós, pois claro, que sempre contamos às avessas,
Que sempre contamos o certo do incerto…
Mas tudo isto é real, porque os vultos passam mesmo.
Mas nada disto o é também, porque os vultos não são…
[após uma breve pausa, ergue-se e deambula pela varanda] Ai, os passeios, os passeios,
Esses palcos ruidosos nos ouvidos dos extáticos para isto…
E depois há risos ao fundo da rua e a brisa nocturna que ninguém sente…
E depois há os autocarros levando ninguém, com dois ou três fulanos lá dentro…
Um frenesim que acontece aqui tão perto, mas ouvindo-se como uma festa bem distante…
[pára, colocando os braços atrás das costas] Enfim, tudo parece estar certo…


(Um sujeito surge e pára em frente à varanda, interpelando o homem)

SUJEITO PRIMEIRO: Então, homem! Tudo bem contigo?
HOMEM: Cá vamos andando, meu caro amigo. E contigo?
SUJEITO PRIMEIRO: Vamos indo e… vindo… Então e… diz-me lá: quantos já contaste hoje? [ri,
em aparte, para a plateia]
HOMEM: Oh, meu caro amigo, nem eu sei, nem eu sei! Se o soubesse, dir-to-ia!
SUJEITO PRIMEIRO: Pois, acredito [ri de novo]… Enfim, vou indo… Até ‘manhã!
[aparte, enquanto prossegue] Que tonto, meu Deus!
HOMEM: [voltando a debruçar-se sobre a grade] Adeus, meu caro amigo!
[após uma pausa] Mais um vulto a passar… e outro já lá vem… e este já lá vai…
E são vultos de ninguéns a encher esta rua pálida de sentido…
E uns embatem contra si e outros são abalroados por outros…
E outros ainda passam, mas como se não tivessem passado…
[após uma pausa, dirige-se agora claramente à plateia; tom sereno] Pois é, meus amigos…
A minha vida interior é toda esta rua… ou apenas esta rua, se assim preferirem [ri]
Sim, são vultos o que passa, mas é na minha alma que passa.
A cada passada é meu vê-la que lhe dá vida…
É que a vida das coisas, das pessoas, é apenas o seu significado para cada um de nós…
Em verdade, o que torna extremamente difícil a vida com os outros
É que nós tomamos sempre a nossa percepção das coisas pelas coisas em si…


(pausa, enquanto fita o céu.)

[ergue-se, mudando repentinamente para num tom descontraído] Enfim, mas para que hei-de estar aqui a maçar-vos
com estas filosofias que nada são, e para as quais tenho muito pouco jeito?
Afinal, já lá dizia aquele dramaturgo, um tal de Shakespeare,
Que a vida social não era mais do que uma peça de teatro,
Com as suas personagens, os seus cenários, os seus enredos;
No fundo, que se aperfeiçoava a vida como o escritor que aperfeiçoa o seu instinto cénico…
E por isso é que para mim, [em aparte] que me desconheço absolutamente como já devem ter
percebido (ri), é esta rua a minha vida interior…
Mas também por isso, creio, é que todos aqueles que se dizem conhecer,
Apenas se conhecem por reflexo, como actores treinando em frente aos espelhos…
[num tom jocoso] Mas a peça que representam, conhecem-na eles? Ah, pois é!
É que aquilo que o tal de Shakespeare se esqueceu de acrescentar
É que o palco onde a peça acontece é apenas o estrado da alma de cada um de nós…
E que se é ela o palco onde vivemos, é também ela o único palco onde podemos viver…

(após uma breve pausa, outro sujeito se aproxima da varanda)

SUJEITO SEGUNDO: [num tom lamentoso] Boa tarde, amigo. Desculpe incomodar, mas sabe dizer-me
para que lado fica a Avenida da Liberdade?
HOMEM: [com expressividade] Oh!... Se eu o soubesse, dir-lho-ia meu amigo!
Mas que sei eu desta rua para saber em que direcção fica essa Avenida da Liberdade?
SUJEITO SEGUNDO: [perdido, mas no mesmo tom lamentoso] Hã?... Não percebi… Enfim, deixe estar…
[dirigindo-se à plateia, depois de seguir caminho] Sinceramente, as pessoas hoje em dia parece que andam tolas...


(tropeça)

HOMEM: [após uma pausa; com ar descontraído e movendo-se ao longo de toda a varanda] Mas também, confesso-vos,
estou para aqui a falar em teatros, em estrados, em vidas sociais, mas a verdade…
A verdade é que nunca compreendi isto do teatro, das tragédias, dos dramas…
Sim, eu sei: há quem diga que o teatro é uma espécie de ficção de vida,
Sem que a gente saiba, no entanto, o que é isso da ficção,
Pois tínhamos de saber de antemão que era a realidade…
Mas também é verdade, já agora, que os mais antigos, vejam bem!,
[com ar irónico, fingindo majestade] Diziam-no uma alegoria das forças da Vida e da Natureza!…
Seja lá isso da metáfora o que for e a Natureza o que pensemos que seja…
É que, de facto, com esta rua mesmo à minha frente, sempre disponível,
Sempre com a novidade do mesmo paradoxo,
Para que hei-de ir eu ao teatro, ou tentar compreender isso que é o teatro?...
Enfim, para que hei-de trocar de blusa, se nenhuma delas me serve? [ri]


(breve pausa)

[com um ar ligeiramente mais sério] Por isso é que, para mim… Como direi…
[acompanhando com gestos] Toda a vida não é senão a sequência cénica de um drama nunca escrito…
Pois a grande questão, parece-me, é que isto que vos digo
Também não é senão uma metáfora daquilo que eu treino em frente ao espelho…
Bem vistas as coisas (e as metáforas), que vejo eu para lá do espelho?...


(breve pausa)

[suspirando calmamente] Enfim… Isto do teatro da vida, ou da vida que é teatro,
O que é, é mesmo um insuperável paradoxo…
É que se o palco da vida é apenas a nossa alma,
Então o único público possível não seremos nós mesmos?...
Na verdade, parece mesmo que aquilo em que o teatro imita a vida é o próprio paradoxo;
E por isso, é uma peça de teatro tão boa metáfora para a vida…
O paradoxo que há quando eu digo que esta rua é a minha vida interior,
É o mesmo paradoxo da pessoa que me criou personagem nesta pequena peça:
[circunspecto] Escreveu-me defronte ao seu espelho… pensando que vós veríeis para além do vosso…
(Após uma pausa, um terceiro sujeito deverá insurgir-se da plateia, interpelando o homem)
SUJEITO TERCEIRO: Ó amigo!, desculpe interromper-lhe a actuação, que até estava a
gostar…Mas acho que esta sua última conclusão não é bem feita…
HOMEM: [absolutamente surpreendido pela interpelação] Desculpe, como disse? E interrompe assim a peça…
SUJEITO TERCEIRO: [um pouco envergonhado] Sim, desculpe lá a interrupção, mas… É que a sua
conclusão não é a mais clara…
HOMEM: [intrigado] Ora, e porque a não é?
SUJEITO TERCEIRO: É que aquilo a que chama de paradoxo… na verdade, não é um paradoxo…
HOMEM: [contendo-se] Ai não! Então o que é, ora essa?
SUJEITO TERCEIRO: É um equívoco, meu caro amigo… Mas um equívoco seu… [ri serenamente]
HOMEM: [rezingão] Como assim um equívoco meu!?
SUJEITO TERCEIRO: É que… como você, personagem entenda-se, não supera o paradoxo com
que percepciona a vida, lá se foi equivocar quanto ao paradoxo do próprio teatro… Que é, a saber, o
paradoxo de ao mesmo tempo ficcionar uma vida diferente, com agentes e circunstâncias criados,
mas não ter outra fonte que não seja a percepção do dramaturgo sobre a própria vida… Quer a
pretenda imitar, negá-la ou superá-la… Assim, parece mais claro, não acha? [ri de forma serena]
HOMEM: (após um momento de reflexão, dirigindo-se para os bastidores) [frustrado] Bolas!, eu bem
disse que não compreendia esta peça!...

FIM
Finalizado a 24 de Julho de 2013

José Carlos Lopes Nascimento
(Montemor-o-Novo)
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O Júri deliberou não atribuir 3º Prémio nem Prémio Especial Juventude (artº 9 do Regulamento)

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