23 de outubro de 2008

Trabalhos Premiados na Edição de 2008

1º Prémio

"Ao Homem Metade"

Paulo Assim

(Batalha)

AO HOMEM METADE

(Conhecer-te... tornou-me diferente)


Vou contar, muito resumidamente, a história do Homem Metade (era assim que o «tratava» quando pensava nele). Eu tinha onze anos e estava prestes a dar-se a revolução de Abril de 1974 quando passei a conviver mais assiduamente com ele, e não tenho memória alguma de quando ainda era um Homem Inteiro, normal como todos os homens.


O pai dele tinha uma carpintaria. Assim que lá entrava, o cheiro a árvores cortadas invadia-me os pulmões. Era um cheiro a bosques ceifados. Havia pilhas de madeira e montes de aparas por todo o sítio. O chão era de serradura, andava-se ali nas nuvens. Mas uma serra mecânica de lâmina longa, cheia de dentes, lá ao fundo, causava-me arrepios na espinha quando dividia tábuas em duas, muito perto das mãos que as seguravam. Essas mãos já não tinham alguns dedos. A todos os carpinteiros que eu conhecia faltavam-lhe dedos. Ou o polegar e o indicador, ou só a ponta do polegar e o indicador, ou o mindinho e o anelar. Ao pai do Homem Metade faltavam-lhe dois numa mão e a ponta do indicador noutra. Os que ainda sobravam eram quase todos redondos na ponta, como se a pele tivesse sido esticada e presa com pinças, e praticamente sem unhas. E a serra ceifa-dedos zunia ali tão perto deles, faminta. Não me aproximava muito.


Um dia, como sempre, perguntei pelo filho, o Homem Metade. Tinha, agora, mais confiança com ele e passava muito tempo a escutar as suas histórias. Tratava-o por tu. Às vezes falávamos de pássaros, dos de cá e dos que ele vira por África, e às vezes não falávamos de nada, ficava só a vê-lo colar os fósforos queimados, construindo as suas maquetas com muita paciência. O velho disse-me que o filho estava no lugar do costume, e o lugar do costume era uma casinhota nas traseiras da carpintaria, virada para um bosque em cuja clareira passava um riacho e onde as mulheres da aldeia lavavam a roupa em lajes de pedra. O Homem Metade passava lá dias inteiros, fechado.


Atravessei a carpintaria, os pés sempre sobre o tapete de serradura ancestral. Na casinhota, bati à porta e abri-a sem esperar pela voz de dentro. Era sempre assim que fazia. Entrei e eis o Homem Metade. O Homem Cadeira. O Homem Sem Pernas. O Homem Tronco. O Homem Meio-Homem. De qualquer modo, um Super-homem. Debruçado numa bancada cheia de ferramentas, bocados de madeiras e caixas vazias, colava fósforos na proa de uma caravela.


Lá vem a Nau Catrineta/ Que traz muito que contar./ Ouvi agora, senhores/ Uma história de pasmar.


Aproximei-me. O Homem Metade esteve três anos na Guiné. Foi para lá (ainda não era Metade) com vinte e cinco primaveras e voltou sem as duas pernas. As duas pernas inteiras, sem tirar nem pôr. Uma bazuca, numa emboscada, tinha-lhe traçado o destino. Oito colegas morreram. Guerra era guerra. Às vezes contava histórias horrendas. O melhor amigo morrera-lhe nas mãos, com os miolos a saírem pela nuca. Viu pessoas queimadas, trucidadas e completamente desfiguradas, sendo impossível reconhecê-las. Um dia cercaram uma aldeia e metralharam sobre tudo que se mexesse. Velhos, mulheres, crianças. Nem o capim ficara de pé. Estavam treinados para matar e estavam a servir a Pátria. Guerra era guerra. Mas agora a sua guerra era outra. Uma guerra surda contra o tempo. Sem as duas pernas, preso a uma cadeira de rodas, a sua guerra travava-se dentro daquela casinhota entre caixas de fósforos, colas e lixas, madeiras finas, pregos e martelos. O dia inteiro fechado. A caravela tomava forma com todos os detalhes. O Homem Metade, pouco falador, olheirento, a barba como um matagal a crescer, tinha jeito para aquilo. Em cima de mesas e prateleiras viam-se a Torre de Belém, o Santuário de Fátima, o Castelo de Porto de Mós, o Castelo de Leiria, o Mosteiro da Batalha e a igreja da aldeia. Tudo em fósforos queimados e com os devidos pormenores. Havia um carro de bombeiros. Uma locomotiva. Um hidroavião semelhante ao de Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Bonito. E havia outras maquetas de monumentos que eu não reconhecia de lado nenhum. Perguntei-lhe se a caravela era a Nau Catrineta. E ele: sim, que podia ser.


Pela janela aberta entravam feixes de luz. Viam-se nuvens brancas que eram couves-flor semeadas pelo céu. Fui directo ao assunto que me levava, desta vez, ali: queria uma porção de cola de madeira. Que podia levar a que quisesse, mas era para quê, podia saber?... A ele, não podia mentir. Não era capaz de o fazer ao Homem Metade. Viver agarrado a uma cadeira de rodas para o resto da vida era já um castigo suficientemente grande. Dizer-lhe uma mentira, por mais insignificante que fosse, não fazia sentido. – Vou fazer umas asas – disse-lhe eu, orgulhoso. Era um segredo meu, mais ninguém sabia. Nem os meus colegas da escola.


- Umas asas? De papel, para brincar?


- Não, de penas, para voar como Ícaro – respondi, e o Homem Metade começou a rir-se e fez marcha atrás para alcançar um alicate. Cabeça, tronco e membros sem-membros. Só braços e calças vazias dobradas sobre o assento salpicado de aparas e lascas de fósforos. Eu não me estava a ver sem pernas. Nada de corridas, nada de bola, nada de trepar árvores, nada de nada. Se me chamassem para a guerra, fugiria antes que me ceifassem as pernas.


- Para voar? – o Homem Metade deixou de colar fósforos e fixou-me atentamente. – Sabes que quando tinha a tua idade também pensei nisso? É verdade. Fazer umas asas para voar. O meu sonho era poder voar. Como Ícaro.


- Eu vou fazê-lo – disse, convicto. – Vais ver!


- E vais atirar-te de onde, para poderes voar?


- Ainda não pensei nisso – eu olhava para as maquetas. – Talvez da torre da igreja.


- É o ponto mais alto da aldeia, de facto. Mas não te esqueças que quanto mais alto subires... mais alta é a queda.


- Não tenho medo das alturas – disse eu. – Quero ser aviador, quando for grande, e além disso vou fazer umas asas tão perfeitas como as de um pássaro.


- Vais ser o homem mais famoso da nossa aldeia... – o Homem Metade gozava comigo; entendia-o. Quando se é novo, com onze anos, todas as fantasias são permitidas. Ele também sonhara com aquilo. Voar. Agora todos os sonhos lhe estavam vedados. O mundo dele resumia-se ao que estava dentro da casinhota. E ao que conseguia ver de longe: largou a caravela, fez rodar a cadeira, tirou uns binóculos duma gaveta e dirigiu-se à janela: ficou assim demoradamente a olhar: lá para o fundo, para a clareira do bosque onde corria o riacho. Perguntei-lhe o que estava a ver. – Pássaros – respondeu, sem desviar os binóculos. Pedi se podia ver e ele, laconicamente, disse para eu esperar. Quando peguei nos binóculos, assestei-os lá para o fundo e procurei pássaros na copa das árvores. As árvores estavam muito próximas, muito folhosas, muito verdes, mas não havia pássaros. Se houvesse, estariam muito bem escondidos. Baixando as lentes para o riacho, vi, isso sim, três mulheres batendo com a roupa nas lajes. Não eram muito novas nem muito velhas, deviam ter a idade do Homem Metade. Tinham os pés na água e as pernas nuas até muito acima do joelho, a pele voluptuosamente clara e luzidia com os reflexos do sol. E voltei a procurar os pássaros. O Homem Metade regressara à Nau Catrineta e queimava mais uma caixa de fósforos. Tinha o silêncio como cúmplice. Não existiam palavras para a sua dor.


- Um dia vais emprestar-me os teus binóculos? – pedi eu; ele não disse nada. Colou mais um fósforo. Perguntei-lhe se já alguma vez tinha visto um cuco e continuei a espiolhar as árvores. Vi um melro do tamanho de uma águia. Tinha, no bico amarelo, uma minhoca do tamanho de uma cobra. O bicho a contorcer-se. E de repente desapareceu. Quando eu disse «estou a ver um melro», contentíssimo, já o pássaro tinha sumido.


- Sabes? Nunca vi um cuco. É por isso que quero viver nos bosques, e ficar à espera. Posso ganhar raízes, mas hei-de ver um cuco. Se me emprestares os binóculos, um dia destes – e ele, claro, emprestava-mos. – É mais interessante assim, vê-se tudo ao pormenor. Também posso ver como os pássaros constróem o ninho, como começam do nada com duas ou três palhas e o vão tornando redondo e fundo e forrado com penas macias e quentes. Não achas que os ninhos, em geral, são uma obra de arte? Eu acho. Depois é ver os ovos eclodirem e os filhotes crescerem de goelas no ar, e depois deixarem o ninho para darem o primeiro voo. Como é que um pássaro sabe que sabe voar? Já pensaste nisso?


O Homem Metade não estava ali. Corria por campos de papoilas e tremocilhas e trepava oliveiras em busca de ninhos. Enlaçava as pernas nos troncos mais compridos das árvores e subia como um macaco. Empoleirava-se e fazia equilíbrio nos ramos horizontais. Tinha onze ou doze anos, como eu… E a caravela à espera de fósforos.


- Mas já alguma vez viste um cuco? – insisti, arrumando os binóculos. O Homem Metade caiu em si. Não. Nunca tinha visto um cuco, se bem se lembrava. Em África vira aves de todas as cores e tamanhos, mas um cuco nunca tinha visto. Só ouvido o cucu ao longe, e a última vez fora há pouco tempo.


- Esse pássaro fascina-me, tem qualquer coisa de mítico. É como o Gigante Adamastor. – Não soube por que comparei o cuco ao gigante lendário de Camões. Talvez por causa da caravela de fósforos. Depois tirei duma barrica para uma lata a cola branca de que precisava. Parecia leite espesso. O Homem Metade ainda me deu uma trincha. E agradeci e fui-me embora, porque tinha pressa de construir as minhas asas. Parti a pensar no Homem Metade. Era uma boa pessoa e dar-lhe-ia asas, no tal jogo imaginário que eu tinha: que era dar asas às pessoas boas, sendo eu – coisas de miúdos – o super-herói Homem Pássaro com super-poderes. Asas, pois, para o Homem Metade. As suas mãos faziam maravilhas. Aqueles monumentos todos, feitos com tanta paciência e dedicação, ao mais pequeno pormenor, janelas manuelinas, coruchéus e gárgulas fantásticas, a igreja da aldeia com os cata-ventos e todos os sinos, pequenos e grandes, no campanário. O hidroavião Lusitânia, que fez a travessia do oceano Atlântico de Portugal para o Brasil, pela primeira vez na história da Humanidade, por ares nunca dantes navegados, tinha todos os detalhes. Nem lhe faltavam as cruzes vermelhas da Ordem de Cristo. Ele era um verdadeiro artista, fazia obras de arte com as mãos. E parti contente por tudo, pelos binóculos que um dia havia de levar, pela lata de cola, pela trincha e sobretudo pelas obras de arte do meu amigo da cadeira de rodas, mas não reparei que o deixara a chorar. Eu tinha onze anos, não podia reparar. As olheiras do Homem Metade tornaram-se lagos insalubres. Grossas e silenciosas lágrimas correram-lhe como rios para o matagal de pêlos da cara. Era sempre assim, soube mais tarde. O Homem Metade regressava à infância para correr pelos campos e ir aos ninhos e trepar as árvores. Longa e dolorosa viagem no tempo, essa. Eu não sabia metade da história. O Homem Metade dormia pouco, e quando dormia acordava sobressaltado com pesadelos que se passavam em África. Crianças negras sem rosto corriam para ele e traziam-lhe as pernas de volta, mas as pernas enchiam-se de vermes e apodreciam num instante. Então as crianças riam, mesmo sem rosto, e ele despejava-lhes tiros e tiros de metralhadora para se vingar da brincadeira de mau gosto. Acordava com suores frios e levava logo as mãos às pernas, mas elas não estavam lá. O pesadelo era quase sempre o mesmo. Também sonhava com o melhor amigo. Via sangue e miolos a escorrerem pelo corpo e o amigo dizia-lhe que estava no Inferno, pedia-lhe que o levasse para o Céu. O Céu estava muito, muito longe. Um bater de porta mais brusco deixava-o nervoso. Uma sirene de bombeiros também. Todos os ruídos fora do normal o faziam reviver a guerra. Um miúdo a correr deixava-o destroçado. A guerra continuava dentro dele. E assim a Nau Catrineta foi sacudida por violenta tempestade. A ira de Adamastor também existia ali, dentro da casinhota. Eu ainda não sabia metade da história.


Mas o Homem Metade, sendo ele, literalmente, metade de um homem, passou a ser para mim o exemplo máximo da coragem e da abnegação humanas. Como se deve imaginar, não cheguei a voar como Ícaro, nem sequer concluí «as minhas asas» de onze anos. Simplesmente, para o resto da vida, conhecer o Homem Metade... tornou-me diferente.


2º Prémio

"Traça ou não, eis a questão"

Maria Teresa Alves da Silva

(Lisboa)


Traça ou não, eis a questão...

Sou uma traça.
O cheiro de um livro novo é, para mim, um perfume delicioso. O de um antigo, um aroma que me deixa tonta de prazer.
Posso pairar entre estantes e prateleiras, carregadas das minhas guloseimas preferidas, tempos infindos, os olhos lambendo as lombadas, um arrepiozinho de fome no estômago a antecipar o prazer da primeira dentada.
Só por duas ou três vezes me lembro de me ter dado mal com a ementa.
A primeira foi com um livro muito antigo, tinha por lá andado já, outro apreciador de raridades, como eu, que infelizmente se esquecera de lavar as quelíceras após a refeição anterior. Detectei de imediato restos da impressão de um qualquer Diário da República com o que fiquei agoniada por vários dias.
Noutra ocasião, estando numa livraria, ouvi a um grupo de humanos que iam fazer “o lançamento de um livro”. Portanto fiquei à espera, muito sossegada no meu canto a ver se me calhava algum a mim.
Mas foi deveras complicado o que se passou a seguir: havia várias pessoas dos dois sexos a falarem em grupos e a fazerem imenso barulho, depois vieram três ou quatro com um pano amarrado à volta do corpo e uns tabuleiros na mão com várias coisas lá dentro. Num instante todos os outros correram para lá e quando voltei a olhar já estavam vazios. Um humano do sexo feminino sacudia aflito uma das mãos, que na confusão fora confundida com um acepipe – isto contava ela para uma outra que lhe estava a colar um pedaço de papel no dedo. Estavam todos aliás, com os cabelos desalinhados e uns rasgões nas indumentárias – o que ouvi comentar depois “já ser hábito naquelas ocasiões”. Espantada com esta atitude que só conhecia nuns parentes muito afastados em África, na realidade só vagamente aparentados – um tipo de formigas – considerados a vergonha da família; perdi por instantes a sequência da acção dentro da sala.
Os humanos estavam agora todos em fila em frente a uma mesa, onde um deles com uma caneta na mão escrevia qualquer coisas em cada livro que todos os outros levavam. Tinham todos um grande sorriso em especial o que estava na mesa.
Ou seja: afinal não chegaram a “lançar” livro nenhum ou então eu perdi precisamente essa parte...
Mas, já que ficara até ali, resolvi esperar para ver o que acontecia a seguir e se sobrava alguma coisa para mim.
Foi o meu azar: Daí por um bocado saíram todos, inclusive o da caneta, os últimos foram os dos tabuleiros, um deles com um dedo enrolado. Sobre a mesa ficaram dois ou três livros e eu zás, nem pensei duas vezes e fui-me a um deles.
A capa não tinha nada de especial, mas do papel vinha aquele aroma doce, tipo açúcar caramelizado, que me deixava a tremer de desejo.
Os tremores também já eram de fome, pois estava em jejum e já íamos no final da tarde. Sendo assim, fui-me a ele com unhas e dentes, sendo que, numa altura destas, uma traça lembra-se lá que não tem uma coisa nem outra!
Em má hora o fiz: comecei de cima para baixo e depois de baixo para cima, experimentei até da direita para a esquerda, e não é que mastigava, mastigava e não ia para baixo? O pouco que consegui engolir, indigesto até mais não, descobri depois que não tinha pontos nem vírgulas. E já agora que penso nisso... nem parágrafos! Céus, que pesadelo!
A terceira situação, foi no entanto, a que mais abalou a minha saúde, já que ameaçou terminar com as minhas noites de sono.
Estava de novo numa livraria, desta vez num centro comercial e ouvi este comentário de vários humanos que passavam um livro de mão em mão: - É uma história de amor muito actual, dos nossos dias... e ouvi risinhos abafados. Várias vozes dizerem que era “picante”. Ora eu adoro um prato bem condimentado, fui-me logo a ele sem pensar duas vezes.
Bem, tive insónias e pesadelos terríveis em que vários humanos, pelos nomes pareciam sempre os mesmos, trocando-se entre si, “se comiam uns aos outros” (os termos são do livro), das mais variadas maneiras.
Tive vómitos e andei adoentada mais de uma semana. Ainda hoje acordo, perseguida pelos palavrões que engoli, capazes de fazerem corar as tais primas marabuntas. O que uma traça tem que sofrer! Já nada é como era dantes, até os livros provocam indigestões, tenho que ter sempre uma folha de hortelã à mão...
Uma folha de hortelã ao pé...
Uma folha de hortelã...
Acordo de repente sobressaltada.
Safa que pesadelo horrível! Sonhei que era uma traça. Ainda por cima uma traça com pretensões a intelectual, digestões lentas e gosto por chá árabe.
São as do género mais difícil de aguentar. Mas que digo eu? Traças são traças e são todas iguais.
Que ferro! Como diria o Eça.
Estas noitadas pegada aos calhamaços da Arqueologia estão a dar cabo de mim.
Amanhã trago uma litrada de café para a cama a ver se não me dá o sono nem a traça.
Onde é que estão as fotocópias dos “esqueletos de Cabeço de Arruda” e as dos “Dolmens e Antas”?
Ah!, já estavam no tapete, quase debaixo da cama... e olha, cá está a caneta que ontem me fartei de procurar.
Céus, que calor! Vou abrir a janela... um cheiro a natureza esbraseada, que luta para respirar, inunda tudo. A noite entra de golfão e cola-se húmida aos papéis e à pele.
Lá fora não se ouve passar um gato. O silêncio pesa.
Penso: Que teria sido feito dos grilos e das cigarras?
Ora, fizeram as malas e foram a banhos.
E eu? Eu também devia ter ido se tivesse juízo, em vez de estar aqui, no meio do calor e dos livros a preparar-me para mais uma época de exames.
E a culpa é tua Professora, tu que me encontraste menina do liceu e me disseste que devia lutar sempre por aquilo em que acreditava, que tinha capacidade para ser aquilo que eu quisesse e nunca parar de estudar. E eu tenho cumprido, só não sou a professora de português que esperavas que fosse para seguir os teus passos...
Contigo aprendi a ler Eça e Camilo e a amar o Aquilino dos “Cinco reis de gente”.
Foi quando comecei a juntar os meus primeiros livros, quando descobri o caminho dos alfarrabistas e dos livros em segunda mão.
Fui eu que me fiz, mas foste tu que me moldaste para ser o que sou hoje no amor aos livros e na descoberta de novos caminhos e conhecimentos.
Lá estou eu, de novo, os pensamentos a fugirem em todas as direcções...
Anda, mentaliza-te que não está assim tanto calor.
Concentra-te, força!
Um suspiro e olho para o tecto onde algumas sombras parecem fugir para os cantos do quarto...
Lá em cima, uma traça sobe em direcção à lâmpada acesa, a luz fascina-a e está cada vez mais perto... Ouve-se um leve ruído e é tudo.
Paz à sua alma!
No ar fica um breve aroma a hortelã...


3º Prémio

"Poucas Palavras"

Cláudio Martins

(Brasil)

POUCAS PALAVRAS

Ele não era homem de muitas palavras. Também não conhecia as letras. Desenhava garranchos que lembravam seu nome em algum documento que fosse preciso, mas achava perda de tempo. Afinal, pensava ele, se a palavra de um homem não tiver valor, seus rabiscos num papel hão de valer ainda menos. Já tinha ouvido isso antes, mas quando ouvi dito por ele, finalmente as palavras fizeram sentido.


Estava sempre de bom humor. Por mais que algo ou alguém o aborrecesse, usava seu próprio jeito simples para apaziguar os ânimos. “Fazer o quê?” iniciava calmamente após um longo suspiro, “Deus não me deu inteligência, só força para trabalhar a terra, então está tudo bem” dizia fazendo referência ao fato de usar um vocabulário reduzido para todos os assuntos.


Agora que já se foi deste mundo, fico pensando se não teria sido minha obrigação contar a ele o quanto conhecê-lo me tornou diferente. Não que isso fosse mudar o seu jeito de ser ou apreciar mais minha companhia. Não faria diferença. Continuaria a ser a mesma pessoa de olhos vivos, de um tom azul feito o céu daquelas manhãs ensolaradas de inverno.


Iria continuar a me receber sorrindo como sempre fez. A me cumprimentar com a mão forte e o abraço carinhoso como se estivesse recebendo um de seus próprios filhos. A me dizer, apenas com o olhar, “que bom ter você aqui mais uma vez!”


Eu já era homem feito quando ele me ensinou a pescar. Não que eu não soubesse fisgar um anzol, segurar a vara de pesca ou até arremessar a linha com um molinete. Foi ele que me ensinou a entender o comportamento dos peixes. A perceber pequenos detalhes que não estão nos livros. A ler a superfície da água e supor, com comparações simples, o que se passava no fundo de uma lagoa.


Segundo ele, uma pescaria era bem mais que atrair o peixe e tirá-lo para fora d’água. Era um estado de espírito que o pescador tinha de vestir antes de se achegar ao rio. E, para que pudesse vestir essa aura de calma e serenidade, era necessário despir-se da agressividade, do desânimo, da preocupação. “senão o peixe não vem” afirmava ele fingindo uma convicção quase infantil. “E, lá embaixo, um conta para o outro que aqui em cima tem gente triste e vão todos procurar outro lugar para ficar.” Então aprendi a fazer tudo que tiver que ser feito com alegria. Aproximar-me das pessoas sem demonstrar tristeza ou irritação. É melhor assim.


Também tentou me ensinar a fumar um bom cigarro de palha. Mas, isso, não fiz questão de aprender. Contentava-me em ficar por perto, apreciando o perfume dos fumos que ele mesmo misturava em épocas certas do ano. “Um ‘palheiro’ no meio do dia clareia as idéias!” dizia ele com muita propriedade. E acho mesmo que aquele ato de confeccionar artesanalmente o próprio cigarro tivesse algum efeito terapêutico, já que não custava menos de dez minutos de atenção voltada apenas para aquele trabalho. Tempo suficiente para que o cérebro, por si só, reorganizasse os pensamentos que por ventura o estivessem importunando.


Mas o que mais me marcou em conhecer esse que acabou se tornando, mais que meu sogro, meu amigo e segundo pai, Vicente, foi sua capacidade de amar a própria família. Não falo do amor fraterno de todos os pais por seus filhos. Falo do amor que recebe e acolhe a cada novo membro que chega como se sempre tivesse sido um dos seus. Um filho querido, que andava distante e de quem sentia falta todos os dias. Era assim que ele me fazia sentir.


Com ele aprendi que os livros me ensinavam as letras e as ciências. Mas não me ensinavam o valor do verdadeiro respeito que se deve a todo ser humano, sem exceção. Que a escola me ensinava fórmulas e métricas, mas não me ensinava a sentir as pessoas e a valorizá-las pelo que elas representam. Que títulos e honrarias são muito bonitos, mas que ninguém se alimenta do belo. E que até o belo pode, um dia, perder seu reinado para os efeitos do tempo.


Foi depois de conhecê-lo que aprendi a observar os pássaros e a imaginar como seriam suas vidas. A apreciar uma bela paisagem não apenas como elemento estético, mas como poesia que se ‘saboreia’ com os olhos. A olhar para a família reunida ao redor do fogo no inverno e sentir os olhos marejarem de alegria.


Depois que o conheci, aprendi a entender o sucesso e a felicidade como coisas distintas, ocupando cada uma seu lugar no coração dos homens. Que tão importante quanto perdoar erros alheios era aprender a perdoar a mim mesmo. E que ser feliz dependeria muito mais do que eu realizasse dentro de mim do que no mundo ao redor.


Meu pai foi e sempre será único e insubstituível. Outro grande homem de poucas palavras que educava pelo exemplo e não pela retórica. Pessoa correta, inteligente e de honestidade a toda a prova. Mas tinha os sentimentos ocultos e impenetráveis. Que fugia do abraço e dificilmente se permitia brincar com um filho. Demonstrava seu amor em momentos raros e breves, mas não descuidava de ninguém a sua volta. Transmitia segurança e serenidade.


Já Vicente, meu querido sogro, era transparente como água cristalina. Capaz de sentar ao lado de quem estivesse triste e permanecer ali, quieto. Apenas esperando uma oportunidade para que os olhares se cruzassem e que ele pudesse oferecer seu sorriso de amigo. Que rolava na grama e brincava de cavalinho com os netos. Capaz de fazer aflorar, sem o menor esforço, o que havia de melhor em cada um.


Hoje, analisando os momentos que passamos juntos, lamento por terem sido tão poucos. Permito-me discordar dele em apenas um ponto: Deus não o privou de inteligência, como ele supunha porque não sabia usar nem a metade das palavras que se acostumara a ouvir de pessoas ditas mais cultas. Acredito, isso sim, que Deus, em um momento inspirado, criou um homem único, que falava com os olhos e com o sorriso. E que de tão sincero, não precisava mais que umas poucas palavras para expressar o que pensava e o que sentia. Poucas palavras, concebidas pela alma e ditas com o coração.



Prémio Especial Juventude

"A presença na ausência"

Vânia Maria Rebola Pimenta

(Redondo)

A presença na ausência


Na nuvem de alegria e azáfama da infância, um trovão rasgou os céus, o mundo tremeu como se fosse desabar e feridas dolorosas rasgaram o meu coração.


Um ser tão normal como a sua própria vida estava em constante mutação onde o corpo inchado deu o sinal de alerta. As preocupações cresciam. Na minha alma de criança não havia sensibilidade para conseguir sequer especular o que estava a acontecer.


Não sei como se diz a uma criança que a sua mamã tem cancro, nem como se explica que naquele momento foi declarada uma batalha contra um invasor maligno que insiste em ocupar as terras que não lhe pertencem; só sei que apesar dos meus modestos oito anos tive consciência da gravidade da situação.


Deu-lhe Deus, não em vão, no batismo a graça de Piedade, e eis que é no livro sagrado, segundo São Mateus que se evocará a desgraça : “Senhor, filho de Davi, tem piedade de mim! Minha filha está cruelmente atormentada por um demónio.” Demónio ou não aquele tumor maligno veio atormentar de forma revolucionária a família, os amigos e até os médicos que com espanto e esperança lutaram até ao cessar fogo.


E foi esse monstro com vida própria e sabedoria acrescida que me roubou a nascente do amor, o orgulho do ser e a alegria de viver como se nada fosse, e que deixou secar nas minhas veias o rio da protecção maternal que tanto saciava a minha sede.


Que dia fatídico.. lá foi para a “terra fria” a minha mãe do coração, sem voltar a ver mais a luz do mundo, a terra lhe caiu em cima e lá ficou na eterna escuridão.


O lema de vida jamais será esquecido: “A esperança é a ultima morrer”, mas esperança que tanto evocava terminou quando na lápide de luto foi escrito: “ Aos vinte e nove anos de idade foi a tua despedida, ficas sempre na lembrança para o resto da nossa vida”.


Cresci e faço a minha viagem pela estrada da vida, onde sou a condutora que necessita de um co-piloto especial que está sempre ali ao lado no banco do “pendura” só para me guiar!


Dói... Ainda falta esquecer as imagens do sepulto; agradecer à saudade por manter no meu coração a alma que amo de paixão; dizer o quanto a amava mas eu nem sei se já sabia o que isso era quando partiu... No final os seus últimos gestos de mãe falaram tudo o que faltava. Palavras para quê?!


O que nos une é muito mais do que o ADN, o cordão umbilical ou a fotografia que guardo naquele cofre onde nem toda a gente entra, na esperança de que salte da moldura a chama de mãe que não apaga com qualquer vento; o que nos une é o sorriso que ficou para sempre reflectido no espelho da minha memória.


Fiquei diferente, cresci rápido, sofri muito e chorei ainda mais porque perder a mãe é uma das maiores dores que um filho pode sentir. Foi essa dor que senti cada vez que de uma mãe precisava...


Vivo com medo de um dia o destino marcado para a minha mãe seja geneticamente transmissível... e que eu dê aos meus filhos o eterno desgosto de viverem sem a minha presença.


Sinto falta...


do ser que ralha e zanga,


Castiga e reclama,


mas que cuida, perdoa,


Educa e abençoa!




Menções Honrosas


"2000, eu e tu..."

Ana Maria da Silva Cunha

(Braga)

2000, eu e tu…

*
O mar está agitado. Um ruído melodioso das ondas suaviza a atmosfera. Caem uns pingos miudinhos de chuva. A brisa refresca a pele despida, vestida de coragem para fazer frente à baixa temperatura deste dia de Verão.


Entre riscos e rabiscos, coloridos em folhas de papel improvisado, dão-me uns beijos e uns abraços. Aquecem o ambiente com birras e choros fingidos. Observo-as com orgulho. São as minhas duas bonecas. Flores de pétalas douradas, duma planta que germinou. Resultado da fusão entre dois corpos, de duas partes simétricas que se complementam.


A minha outra parte está sentada. A areia colada aos pêlos serve de camuflagem a um bronzeado por atingir. Esboça um sorriso, simples, ternurento. O mesmo que me cativou no primeiro olhar.


Estávamos em pleno ano de 2000. O mítico 2000. Em criança, falar deste número era quase sinónimo de ficção científica. Toda a novidade de entrada no novo milénio já havia sido ultrapassada. Durante o mês de Agosto, o tema é Verão, férias, descanso, relaxe, animação…


Quando o avião levantou voo, tive a sensação que dessa vez a viagem seria única. Não fosse o destino tão aguardado. Daqueles sonhados, ainda o número 2000 não passava de ficção científica!
Itália, um país onde a língua parece cantada. Onde o renascimento marcou. Onde eu iria renascer.


Aterrei em Milão, cidade cosmopolita. Chovia imenso. O caos do trânsito, a condução desorganizada. Pareciam novos cenários do sonho. Chegávamos em pequenos grupos para sermos integrados num de grandes dimensões. Horizon 2000 – assim se designava o projecto. Numa miscelânea de nacionalidades – portugueses, espanhóis, italianos, franceses, belgas, israelitas – davam as instruções para os dias seguintes.


Numa sala repleta de jovens, a mistura das várias línguas transformava-se em acordes desafinados. Eu participava igualmente dessa desafinação, conversando animadamente com outros portugueses. Nesse momento, ele chegou (Tinha ficado esquecido sete horas no aeroporto – soube mais tarde). Cabelo bem rapado, mochila às costas e ar ofegante, surgia um pouco reticente.


A mistura de identidades dava origem a uma verdadeira caldeirada, temperada bem ao gosto português, com pitadas de piadas, num constante respeito pela diferença.


Com contornos mais picantes revelava-se Maria. Italiana de abdómen tatuado, numa projecção de “arte natura” ao vivo.


-Follow Maria! – assim se apresentava uma das líderes / guia da actividade em questão.


-Sigam a nossa bolacha! Bolacha …Maria! – participava ele nas gracinhas bem à “portuga”, enquanto os pontos de reticências iniciais desvaneciam na multidão de gente que seguia a rapariga.


Perdi o bilhete do autocarro. Exactamente aquele que faria a ligação ao ponto de hospedagem inicial. Subitamente, a sua mão tocou na minha. Numa voz suave, mostrou-se disponível para ajudar.


Um gesto sem registo marcado no consciente… mas impresso nas fotografias tiradas ao longo dos dezassete dias posteriores (surgimos frequentemente lado a lado, numa proximidade inconsciente, irreversível).


Em caminhada pela Toscana, numa panóplia de aventuras – dormindo em igrejas, tomando banho em lagos ou irrigados por mangueiras – fortificava-se o elo, aparentemente invisível.


Dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, mergulhávamos numa paisagem encantadora. Daquelas que ofuscam o raciocínio e, simplesmente, nos deixamos levar. Ao sabor do vento, aquecidos por raios de sol…


De vez em quando, uma pequena tempestade iluminava o sonho, refrescava a pele, amenizando o clima especial desta região italiana, deixada para trás após quase uma semana de viagem.


Seguiram-se paragens por Parma e Arezzo, antecedendo a visita à cidade de Roma, onde ruas surgiam apinhadas de gente, lembrando um formigueiro que tenta, a todo o custo, alguma funcionalidade. Naquela que é uma das mais maravilhosas cidades do mundo...


Florença revelou-se o detalhe final, numa grandiosidade à semelhança do eterno David… A partir daí, descolaria o avião de regresso a Portugal. Tal como na ida, a vinda seria feita em pequenos grupos, com diferentes horários de partida. A grande surpresa estava prestes a revelar-se…os nossos bilhetes coincidiam na íntegra, conduzindo-nos ao mesmo voo. Aquele que, ainda hoje, nos faz voar…


"Pipoca e o tio Galopim"

César Augusto Silva Graça de Sousa

(Amora)

Pipoca e o tio Galopim


No âmago vasto e diverso das memórias da minha infância, há uma persistente em nitidez e força, ao contrário das outras esboroando-se com o tombar dos anos. Quis o acaso que a residência dos meus pais se situasse a pouca distância do Jardim Zoológico da cidade. Eu devia andar por volta dos meus quatro anos, quando um dia os meus pais decidiram levar-me a visitá-lo. Só há poucos dias o Verão tinha começado, pois ainda perduravam os últimos sopros da Primavera, gerando-se uma mistura atmosférica ao mesmo tempo estranha e deliciosa.

Eu nunca conseguiria reduzir à pequena escassez destas páginas todas as emoções por que passei nesse dia. Ao longo dessa ainda curta parcela da minha existência, eu vivera convencido de que, para além dos humanos, a fauna do planeta se oferecia, somente, nas formas de cães, gatos, ratos, e pássaros. Um mundo urbano, simples e descomplexado em harmonia com o tamanho do meu corpo. A descoberta dos inumeráveis animais, dos seus cheiros intensos e das suas vozes inauditas pôs o meu mundo em reboliço, como uma onda de choque a esbofetear os meus sentidos.

Passei toda a viagem de regresso a casa com o pensamento ocupado nos animais. Sem dúvida, para mim os mais fascinantes eram os pássaros, cujos admiráveis cantos tinham a faculdade de isolá-los e elevá-los da vulgar desordem de guinchos e gritos preenchendo o recinto do Jardim Zoológico. Nessa mesma noite, eu, com a ingenuidade dos anos pré-escolares, contei aos meus pais a intenção de ter um passarinho para viver comigo. No entanto, a minha qualidade de petiz esbarrou com a responsabilidade necessária para cuidar de um animal de estimação, e os meus desejos da vida real converteram-se, à força, em sonhos no reino de Morfeu.

Anos mais tarde, decorria o primeiro ano da escola primária, a convivência diária com os meus colegas possibilitou-me o conhecimento das estórias sobre os seus animais de estimação. Cresceu, assim, a frequência com que eu expressava aos meus pais o desejo antigo de ter um passarinho. E, no dia do meu sétimo aniversário, eu rebentei de alegria ao receber de presente um espantoso pássaro amarelo vivo, piando e olhando-me do interior de uma gaiola branca assente sobre um esguio pedestal.

O pássaro tinha por hábito dar pulinhos curtos e rápidos de um poleiro para o outro, juntando um pio breve a cada uma das suas acrobacias. Então, associando a cor amarela da penugem, eu e os meus pais decidimos chamar-lhe Pipoca, porque parecia mesmo o milho que estalava dentro da panela sempre que a minha mãe fazia pipocas.

Tanto tempo dedicado ao Pipoca! Tratando da comida, mudando a água, limpando a gaiola, pondo-o ao sol, mas, acima de tudo, fazendo-lhe companhia como ouvinte atento dos seus cantos. Acontecia, por vezes, esquecer-me até dos deveres escolares. Por isso, eu não compreendi como foi o Pipoca capaz de me trair, quando num certo dia das férias de Verão, por descuido meu, deixei alguns instantes a porta da gaiola aberta. Ainda me lembro de avistar o pássaro amarelo fugindo pela janela da cozinha e perdendo-se em voo desorientado na paisagem citadina.

A minha completa desolação espelhou-se nos dias que passei à janela da cozinha, junto à gaiola vazia, esperançado que um Pipoca arrependido voltasse para casa. Os meus pais propuseram-me escolher outro pássaro, mas eu recusei sempre trocar o Pipoca por outro. O meu estado de enfermiça preocupação com a saúde do Pipoca durava há duas semanas, quando foi interrompido pela visita do meu tio Galopim, um guarda-florestal a poucos meses da reforma. Procurando amenizar a minha tristeza, o meu tio convidou-me para, ao outro dia, ir com ele para o trabalho.

Na manhã seguinte, a viagem até à orla da floresta realizou-se de automóvel. Gradualmente, os sons da cidade desapareceram. Fizemos a pé o resto do caminho. À medida que nos afundávamos na floresta, o meu tio explicava-me coisas sobre o seu trabalho. Ele conhecia como poucos os trilhos que percorríamos. A dada altura, achámo-nos cercados por árvores de muitas espécies e, para quem como eu estava habituado a viver rodeado de prédios, essa foi uma experiência deslumbrante.

Pelo caminho, o meu tio chamava-me a atenção para certo animal que aparecia, ou se escondia atrás dos arbustos, ou ainda um pássaro acabando de voar dum ramo de árvore. Mas os meus olhos, nada exercitados para essa actividade, eram lentos de mais e, para não perder todo o espectáculo, eu buscava renovado auxílio junto do tio Galopim, de modo a retirar algum proveito do passeio. Ao fim de algum tempo, porém, eu começava a ficar cansado e aborrecido. Assim, perguntei:

“Tio Galopim, aqui há leões?”

“Leões?!”, respondeu indignado o meu tio. “O que julgas tu que isto é, um Jardim Zoológico?”

Pouco faltava para a hora de almoço e o meu tio propôs que nos sentássemos à sombra de uma árvore no caminho. Durante a refeição em forma de piquenique, eu ouvi do meu tio uma pequena palestra que me serviria de lição para o resto da vida.

Começou por revelar-me que, na sua opinião, os Jardins Zoológicos eram uma perfeita aberração, uma criação do bicho Homem como remédio para o mal que havia espalhado pelo mundo, a destruição das florestas e por consequência dos habitats dos animais, hoje exibidos orgulhosamente atrás de grades. Segundo o meu tio Galopim, nem um só animal permaneceria dentro das jaulas se elas fossem abertas. Neste instante lembrei-me do Pipoca.

Como se adivinhasse o meu pensamento, o entusiasmado tio Galopim prosseguiu e aconselhou-me a não continuar triste pela fuga do Pipoca e a não me culpabilizar pelo perigo e incerteza na vida futura do passarinho amarelo. Garantiu-me que os animais, quando livres, encontram sempre o caminho da felicidade. E, caso eu duvidasse, bastaria abrir os olhos, os ouvidos e sobretudo o coração para sentir a paisagem natural onde concluíamos o piquenique.

Pensando melhor, eu já não encontrava qualquer graça naquela distante e primeira visita ao Jardim Zoológico. Que satisfação sentiria alguém em ver todos aqueles animais presos dentro de jaulas, dormindo sobre chãos de cimento frio e andando de um lado para o outro, talvez enervados por não acharem a saída daquelas vidas tristes e miseráveis? E que felicidade experimentara o Pipoca todo o tempo fechado na gaiola, por mais deslumbrante que ela fosse, e ainda que lhe doássemos todo o amor do mundo? Hoje, não saberei dizer se ele cantava de alegria ou para aliviar as mágoas. Não costumam os homens dizer que quem canta seus males espanta? No fim de contas, se nós não entendemos as falas dos outros animais de que modo pretendemos alcançar os seus corações? A única solução é imaginarmo-nos, por momentos, nos seus lugares.

A conversa com o tio Galopim foi a semente da árvore das perguntas que me fez questionar a relação entre os humanos e os outros animais partilhando, em conjunto, o planeta Terra. Corrigiu em mim comportamentos errados e em risco de se manterem pela vida fora. Agradeço ao meu tio por o meu peito alojar hoje um coração menos pesado.

No encontro com o tio Galopim, esqueci-me de fazer uma última pergunta:

“Porque é que os homens repetem os mesmos erros, geração após geração?”

Eu sei que o meu tio teria respondido:

“Oh, meu querido sobrinho, porque é pouco o tempo gasto a pensar!”


"Hoje é azul como tu"

Eduardo Luiz Menezes Costley-White

(Lisboa)

CONHECER-TE TORNOU-ME DIFERENTE POR ISSO

HOJE É AZUL COMO TU

Hoje acordei um pouco mais feliz. E por isso o azul das calças e da camisa e da gravata e das meias. Um pouco dele por dentro, também. Lá fora, um ténue Sol faz da manhã um milagre divino. Que bom, num País tão escuro há um tranquilizador azul. Dia bom para andar de avião, entre as nuvens, entre as micoses de Deus. Eu moro alto. Num décimo primeiro andar da capital. Tem janelas largas, tem o frémito constante dos chapas pela avenida, tem mulheres negras esbeltas, lavadas e matinais na sua beleza. Ha, e a chata da vendedora de cigarros da qual me esquecia. Quero aquela minha parte, ameaçou-me logo pela manhã. A mulher no banho e eu a tremer no intercomunicador. Eu que nunca fui de amantes onde é que me fiquei a dever? Mas há o azul dentro e fora da flat e a calma que ele transmite. Quem é? Disse com a voz armada de um Eduardo que não tenho. A senhora dos cigarros. Patrão está-me dever noventa mil meticais. Descansa-me o coração. Ok, ok. Só logo à tarde, digo como se falasse do Clube de Paris. E parto novamente rumo ao quarto. O desodorizante de almíscar e uma água de colónia barata ajudam a compor o meu poeta fardado de empregado bancário. A Guta veste-se e a casa fica mais azul ainda. Cheia de estrelas espalhadas pelo chão. Está bonito o Mundo, está tranquilo e mágico como uma mulher que se veste. Respiro o poeta na cor achocolatada da Guta. Aveludada mulher que me atura. Sinto que há gente dentro de mim, gente, muita gente feliz. Aceno a todos eles um bom dia. É imperioso que o faça. Quando estamos azul por dentro além de vermos o País assim, também temos um dentro de nós. Que bom que é este o meu, todo verde, igualmente. Arborizadamente limpo. A dona Francisca, a minha empregada, é que não está azul, apesar de eu a ver dessa maneira. Lá terá as suas razões. Noto pelo rosto carrancudo e pela maneira como me pergunta: Patrão, vai tomar o café? Eu recuso-me, não quero tornar mais cinzento o dentro da dona Francisca. Poupo-o à obrigação de me servir. Um homem que é azul não precisa de ninguém a servi-lo. E ainda bem, porque senão não era azul. Descemos o elevador, eu e a minha bela esposa. Ela menos azul porque lhe dói uma costela, resquícios que não deixam o azul impor-se. Mas, mesmo assim, a cor achocolatada da pele empresta o azul ao dia todo. E os olhos grandes e quase fugitivos que tem. E os dentes brancos e acertadinhos com que sorri. E o cabelo crespo e dourado como uma coroa sobre tudo isso. E ela, meu Deus, e ela toda, ali, como uma dádiva do azul ao lado de mim. Rumamos ao emprego pelo País rasteiro que agora divisamos. Os carros das mordomias que nos ultrapassam em tudo, os carros do desenrasca que se parecem com a gente, as motas magras dos trabalhadores suburbanos, as mamanas sem o banho pelas bancas, os buracos lunares das estradas, os estudantes coloridos a caminho das escolas, as crianças enrameladas, que lindas, que maravilhosas, que fábulas elas são. E o Sol, amarelo e forte a brilhar para nós. A Guta deixa a sua cândida voz soltar-se, tilintar pelo espaço exíguo do carro, emudecer o motor: Já não tem combustível a viatura. Olhamo-nos. Afinal a realidade não é tão azul como parece. Não temos dinheiro no bolso, nem no banco, nem em lado nenhum. Não faz mal, arranjar-se-á. Digo eu ainda azul. É preciso que não morra tão cedo esta cor que tenho, pelo menos enquanto a Guta aqui estiver. E ela tranquiliza-se, elegante, conduzindo o seu dourado coche. Até os cavalos brancos eu vejo. Imponentes no trote. Mas pronto. Chegamos. O beijo despede-nos para os empregos. Mas ainda assim o beijo é azul. Que bom sentir os meus lábios dormentes e escuros do batom dos da Guta. Deixo a tristeza partir pendurada à matrícula do carro. Gostava de ter ficado com ela em casa. A sentir-lhe o calor do corpo, a lisura da pele, o hálito fresco da saliva acabada de acordar, os olhos maiores do sono, os carinhos a cantarem-lhe pelos dedos. Vou rumo ao elevador do banco. Azul eu. Eu azul. Azulando todos. E subo subido pelo ascensor. Um bom dia aos colegas mais sonante. Eles notam. Eu sorrio-lhes. Mas não lhes digo mais nada. Este azul é meu. Ligo-me ao Bill Gates num coreânico computador. Os e-mails depressa. Então, um recado do Zé. Um amigo que me ajudou em tempos a publicar poemas em livro. Um gesto azul, se atendermos que foi com o dinheiro dos outros. Magnífico mecenas. Penso. O Zé a dar uso indevido ao dinheiro. É azul também. Agora o compreendo. Vou a correr até à sua Ma-Shamba. Tomar o pequeno almoço. Mandioca cozida e chá adocicado com açúcar amarelo. Numa velha lata de azeite doce. Leio-lhe o recado: Apassarado, um longo voo é o que te desejo. Sai um abraço mano, que não seja ele lastro. Fiquei mais azul ainda. Que bom um recado assim. Por isso, sigo assobiado aos e-mails. Aos jornais por fax. E pumba. Explodiu-me o azul. O azul crescente em que me tornei por haver gente que amo, azul, do lado intenso de me verem desse modo milagroso e ametista que é, sempre, um beijo a trabalhar no interior mais fundo das nossas vidas.


"A marca do medo"

Helena Luísa Miranda Coentro

(Corroios)

A MARCA DO MEDO



Por entre o cheiro a giesta e a rosmaninho das abas da Serra de Ossa, o Zé da Seara percorria os atalhos em busca da lenha que o aqueceria nas noites longas do Inverno que se aproximava. Vagarosamente, pois as pernas já não lhe obedeciam como outrora, carregava o feixe com dificuldade sobre os ombros curvados pelo peso dos anos. Anos recordados com saudade e sempre vividos na grandeza dos montados e, por vezes, quando o calor apertava, à sombra dos sobreiros fraternais que embalavam o seu corpo cansado, enquanto a voz do vento sussurrava aos seus ouvidos a frase de Hernâni Cidade (sobre a profissão do seu pai, António Cidade) que tinha sido ao som da “orquestra da serra e do malho...” que aprendera o valor do trabalho.

Naquela noite o vento soprava forte e abafado com prenúncio agoirento. Por esse motivo o Zé da Seara desejava, ansiosamente, chegar à velha casa caiada de branco, rodeada de pinheiros, para sentir o cheiro do pão fresco feito pelas mãos sem anéis da sua companheira de longa data, que trazia raminhos de alecrim a enfeitar-lhe o vestido singelo.

Já no seu lar, depois da ceia, o Zé da Seara deitou-se sobre um tosco banco de madeira e adormeceu tranquilamente. Tranquilidade essa que foi bruscamente interrompida por um crepitar angustiante de rubras labaredas que, com a sua apavorante beleza dantesca, destruía tudo à sua frente. Lá fora a natureza chorava no coração das aves que soltavam seus trinados de angústia sobre as folhas calcinadas pela força do fogo impiedoso. Levadas pelo vento a giesta e as flores silvestres da charneca desapareciam. A ameaça do fogo tinha-se tornado uma realidade, destruindo e levando, sem piedade, para um amanhã sem futuro a sua terra-mãe que desaparecia em labaredas de dor, perante o olhar dolorido e choroso de Nossa Senhora da Anunciação.

O Zé da Seara sentiu medo. Escondido dentro da sua casa branquinha, espreitava assustado, pelas frestas das velhas janelas. Espantado pela dura realidade do fogo que mão implacável tinha ateado, a sua alma de homem bom, gritava: Não!... Não a essa ameaça que pretendia destruir todo um sagrado e antigo património que os seus antepassados tinham plantado com as suas mãos honestas e calejadas.

A violência das chamas iam destruindo a fauna e a flora que eram bênçãos da natureza na terra onde Hernâni Cidade viu a luz do dia.

O Zé da Seara estremeceu, assustado. O medo vinha de fora, das labaredas alaranjadas que avançavam, impiedosas, marcando com um ferrete de dor a sua alma de homem rural e tornando-o diferente ao causar-lhe aquele estremecimento de terror. A solidão era medonha. Agora, já não poderia percorrer como dantes, o chão sagrado da terra amada. Sentia o seu coração crucificado nos espinhos da saudade. Saudade da paz calma dos montados, do trinar melodioso das aves voando debaixo do céu azul que cobria a terra cultivada pelas suas mãos de lavrador. Saudade do oiro dos trigais, dos campos enfeitados de papoilas e da noite a cair de mansinho, com seu manto de luar, sobre a felicidade simples do seu povo forte, dos homens da sua condição, irmanados no mesmo suor de fraternidade, vivendo harmoniosamente junto da beleza que Deus tinha criado na terra alentejana.

O fogo acabara de invadir a sua casa, impiedosamente, empurrado pelas mãos do vento suão. Crescia velozmente até chegar ao peito do Zé da Seara que esbracejava, desesperado, em espasmos de agonia.

“-Zé, ó Zé! Acorda, homem. Anda para a cama que já é tarde!...”

A voz da sua companheira, soou-lhe aos ouvidos como um hino de alegria, tirando-o daquele pesadelo que o mau presságio do calor intenso lhe trouxera. A esperança tinha renascido. Talvez que essa ameaça seja, apenas, uma sombra negra passageira, que Deus há-de levar nos braços generosos, para bem longe da sua terra-mãe.

O medo acabara!... Novamente há-de subir os atalhos da Serra de Ossa e percorrer os montados de sobreiros, erguendo ao céu, como uma bandeira de alegria, a sua foice de esperança. O riso há-de continuar a morar no seu rosto tisnado pelo sol do Alentejo. As aves hão-de cantar lá fora a sua eterna melodia. O luar vai continuar a cobrir, com o seu manto de luz, os frutos que amadurecem nos campos floridos fazendo renascer as promessas de fartura nas artérias generosas da terra bendita que Florbela cantou...


"Conhecer-te... tornou-me diferente"

Ivone Carla de Matos e Dias Ferreira

(Lisboa)

Conhecer-te…tornou-me diferente

Os teus olhos eram apenas dois pequenos berlindes, castanhos, cor de mel. Berlindes, pequenos objectos de vidro, companheiros de sempre nas brincadeiras de criança. Ali estavam, fixos, no teu rosto. Como se aí se tivessem alojado para provar que a criança ainda o era. Apesar da fome, da tristeza, da guerra, da orfandade.
Era visível que não queriam encarar nada, nem ninguém, de frente. Era mesmo certo, não custava adivinhar, que te sentias melhor, mais confiante, quando, no teu rosto, o sobrolho estava caído, escondendo-os. Ou ainda noutra situação: semi-cerrados, voltados para o chão. Tentando perceber a linguagem dos ladrilhos, do mármore, ou a adivinhar, só pelo ruído das conversas cruzadas, quem era quem, quem estava à frente de quem ou quem era ou não era... ou era preciso ser...

Eram olhos de quem não queria olhar. Por medo? Por vergonha? Eram olhos, dois, pequenos, castanhos, que nos levavam a imaginar aromas e sabores de chocolate e mel. Eles voltavam-se muito mais para o teu interior e eu imaginei-os, muitas vezes, pensando que se podiam derreter e deixar escorrer, lenta, sensual, solitariamente, esse chocolate e esse mel, e de longas lágrimas de solidão doce te alimentasses…

Esses olhos percorriam corredores fundos e escuros de uma África contada e recontada em histórias de horror e mistério. De fome e de guerra. De corrupção. De dor. Sobretudo dor. Uma dor em que continuamente vivias, sem saber que assim estavas vivendo. Eram olhos que preferiam a escuridão, em que as vontades surgem como Saramago escreve, “como nuvens fechadas”...

Esses berlindes de mel, olhos afinal tão pequenos, mas onde cabiam nuvens de vontade e medo, que ali se guardavam e se escondiam... conheci-os num tempo em que também fugiam de mim, com medo de mostrarem desesperos e desejos, sonhos nunca realizados mas construídos em cada pormenor. Só os percebia acompanhados da voz fina e fraca com que pedias “Amiga, dá uma nota, tenho fome…”

Abertos, quase verdadeiros, quase corajosos e castanhos, castanhos de mel, só os vi três vezes, e muito depois de, pensava eu, teres ganho confiança na mulher branca que te sorria e te dizia “Olá!”, de cada vez que corrias para o jipe em que eu chegava e estacionava à porta do restaurante.

Na primeira vez, abriram-se espantados ao escutar a minha pergunta: “queres entrar? Dou-te uma sobremesa, a que tu quiseres escolher…” Olhou incrédulo. Os tais olhos bem abertos. Saberia ele o que significava “sobremesa”? Ou estaria apenas admirado por eu o ter convidado a entrar? Sorriu, envergonhado e, apontando para dentro do restaurante, respondeu “eles não te deixam…”

Vi-os também assim, numa tarde cinzenta, em que se misturavam as “nossas nuvens” com as da natureza, numa simbiose perfeita de tons de céu e mar. Os olhos, que eu saboreava, esses berlindes de mel… cresceram quase sem querer e saltitaram, numa ansiedade infantil, tal como a espuma branca que salpicava as rochas onde as ondas se desfaziam, quando te abracei para te proteger do vento e do frio, nessa tarde diferente e invernosa de Luanda, e te ofereci uma camisolita vermelha e branca…

A última vez que os vi abertos, estavam-no de tristeza. Foi quando pousaram na mala, que no hall do meu hotel, indiciava o adeus. O fim de um caminho a dois. Percebeste que me ia embora.
E voltaste a semicerrar os olhos… como quem, mais uma vez, se defende, não vendo, não querendo ver a realidade, a vida, com todos os seus pormenores, numa cidade rica, de milhões de pobres.
Olhámo-nos. Eu, de olhos quase marejados, sorri-te e ofereci-te o resto das notas e moedas do teu país, murmurando “São para ti. Para comeres esta semana. Chega?” Tu, semicerrando os teus, no desejo, talvez, de guardar aquele momento por mais tempo. O momento em que, mais do que o dinheiro, eu te dava um sorriso e um pouco de afecto. Sem saberes como o expressar, eu sabia que tu o sentias. E enquanto sonhavas, sabe-se lá com quê… os teus olhos, abertos, de tão espantosamente doces, foram ficando claros, claros, tão claros que já não se conseguiam distinguir do tom dourado brilhante do sol que invadia o hotel, naquela manhã de adeus.

Agora, que quase uma década passou, penso em ti, menino da rua de Luanda e pergunto-me por onde andarás? O que estarás a fazer? Quem te dará as moedinhas ou as notas para sobreviveres? Será que sobreviveste?
Recordo-te, e à tua forma de olhar. Lembro os teus olhos berlindes de mel e agradeço---te. Através deles percebi como são difíceis os dias e as noites, as horas, todo o tempo das crianças que, obrigatoriamente, se transformam em adultos magoados, doridos, secos ou famintos de um pouco de afecto, de um pouco de felicidade, de um pouco de respeito.
Através deles aprendi a agradecer o que tenho e a pedir para e pelos que nada têm.
Recordar-te e à tua forma de olhar, fez-me bem.
Hoje, pela primeira vez, consegui pensar, dizer, escrever e aceitar, que conhecer-te…tornou-me diferente.



"Vida sem espelhos"

Luís Manuel Alves Milheiro

(Almada)

Vidas Sem Espelhos

Não sei porque te estou a contar isto. Durante anos fugi dos espelhos, das montras, de tudo o que pudesse reflectir aquilo em que me tornei, tinha vergonha de mim, embora não me permitisse sequer pensar nisso.

Sabes, é como se me fosse esquecendo de olhar à minha volta e perdesse a capacidade de pensar, de me descobrir, de me procurar...

Como tudo começou? É uma história igual a tantas outras. Quando cresces um palmo sentes que a tua vida é tão pequenina que és capaz de experimentar qualquer coisa, para te sentires ilusoriamente, outra pessoa, mais feliz e com mais mundo pisado, para além das ruas cheias de buracos do teu bairro.

A família não teve nada a ver com isto. Eu pelo menos não os culpo. Como é que querias que pessoas que nasceram e cresceram do nada, que andaram aos empurrões pelas ruas, até aprenderem a ser uma subespécie humana, soubessem lidar com a situação? Aliás, ninguém sabe. Há por aí, ao sabor do vento, filhos de doutores e engenheiros – cheios de soluções - , com vários internamentos e que não se conseguem libertar deste vício dilacerante.

Ao contrário deles, eu não tive grandes problemas em viver na rua, já passava demasiadas horas entregue a mim próprio, sabia o que era roubar, nem que fosse uma maçã numa mercearia, para enganar a fome. Nunca voltei a casa porque não valia a pena. Em vez de compreensão teria um cinto ou um pau à minha espera. E além disso não havia nada significativo para levar para a feira da ladra, para arranjar algum. Era tudo usado, pobre e decadente.

Estou a contar-te estes pormenores banais e tu queres mesmo é saber como voltei ao “mundo dos outros”...

Muitos anos depois, nem sei quantos, fui envolvido num roubo da caixa de esmolas da igreja do bairro, apenas por estar a dormir num dos seus bancos duros, em pleno Inverno.

Fui parar à esquadra, levei uns mimos daqueles tipos, antes de me perguntarem o que quer que fosse. Já estava encolhido no chão, meio inconsciente, quando perceberam que não devia ter nada a ver com o assunto. Sai dali bastante maltratado, directo para a cama de um hospital. Além da minha dependência, estava quase tuberculoso. Soube mais tarde que pensavam que não ia escapar. Quando comecei a melhorar, houve uma “irmã” enfermeira que me disse: «Deus escreve direito por linhas tortas». Esta frase foi uma das únicas coisas que gravei na passagem por aquele lugar, talvez pelo ar feliz da senhora, com a minha recuperação. É curioso, nunca tinha pensado nisso, mas aquela cama de enfermaria, foi o primeiro lugar onde me trataram como um ser humano, sem qualquer tipo de reservas.

Quando já estava em condições de receber visitas, apareceu no quarto o padre Orlando, o prior da minha freguesia. Estranhei a visita, porque nunca tínhamos trocado qualquer palavra. Conhecia-o apenas pelas suas excentricidades visíveis e também pelo que se ia ouvindo aqui e ali. Além de andar sempre bem vestido, tinha um BMW que fazia as delícias da pequenada. Segundo se contava nos lugares esconsos do bairro, dava grandes cantadas e repastava-se com algumas moçoilas noviças que passavam a vida na sacristia...

Fiquei um bocado confuso com aquela visita, a primeira e única, enquanto estive naquele hospital. Sabia que não passava de um indigente, que nunca tinha ido à missa nem à catequese. Pior que tudo isso, foi não conseguir olhar para aquele homem, aparentemente comum, como um salvador de almas...

O padre foi parco em palavras e nem sequer falou em Deus, o que me deixou bastante aliviado. Se havia alguma coisa que não precisava naquele momento era de um sermão ou de uma missa cantada.

Disse-me que estava quase recuperado e que tinha de deixar aquela cama, para alguém que estivesse mais necessitado. Perguntou-me se tinha para onde ir. Eu disse que sim, que iria para a casa de uns amigos. «Quais?», foi a única palavra que saiu da sua boca, seguida de um longo silêncio. Sabíamos ambos que isso era coisa que não existia na minha vida...

Foi então que me propôs ficar na paróquia, por uns tempos, até ficar restabelecido. Acrescentando que teria que cumprir normas, mas nada que fosse do outro mundo.

Não sabia o que dizer embora soubesse que não tinha nenhuma outra alternativa.

Já tinha dado muitas voltas naquela cama, expressando nos meus pensamentos a vontade imensa de mudar, de ter uma vida decente, um emprego normal e até uma família. Claro que tinha bastante medo de estar apenas a sonhar alto. Mas naquele lugar tudo era permitido, até porque a droga já fazia parte do passado...

Sabia que naquele momento a melhor solução seria partir para longe, conhecer outras pessoas e outros lugares. Só que esse lugar não era atingível, era apenas um sonho, um desejo.

Foi tão difícil encher o saco que me entregaram, com as roupas demasiado limpas, uma novidade absoluta na minha vida, vindas de alguém com um coração maior e melhor que o meu. O problema não era a roupa, era eu.

Nunca disse a ninguém, mas tinha tanto receio de voltar, de ser confrontado com todos os meus pesadelos, de não conseguir dar um passo em frente...

Senti-me tão estranho ao regressar ao meu bairro, no interior do BMW do Padre Orlando, mais moderno que aquele que tinha sido o regalo da pequenada da rua, ao ponto de dizermos uns para os outros que tínhamos de ir para padres. Naquela altura, viajar naquele carro não era muito diferente de percorrer as estradas das redondezas no interior de um carro patrulha...

Nos primeiros tempos evitava sair à rua. Tinha medo de encontrar falsos amigos, de não ser capaz de dizer não e de ter uma recaída.

Um dia olhei-me ao espelho e fiquei surpreendido. Estava tão diferente, senti que tinha cara de gente.

Foi nessa altura que me apeteceu dar um passeio. Fui pela rua fora, quando dei por mim, estava a bater à porta de casa, à procura dos meus pais e dos meus irmãos. A minha mãe apareceu à porta e perguntou-me, secamente, o que queria. Saiu-me um nada, meio surdo. Ainda perguntei se estavam todos bem, disse que sim, com o mesmo ar. Percebi que tinha sido uma má ideia, era cedo demais. Despedi-me e continuei a caminhada...

Senti-me bastante mal durante uns dias, mas hoje sei que aquele reencontro deu-me ainda mais força para mudar. Voltei a estudar, eu que tinha tirado a quarta classe de fugida. Descobri que a escola não era o lugar terrível, povoado pelo meu professor da primária e amigos. Acabei por chegar ao 12º ano com relativa facilidade. As primeiras lições de informática que tive com o padre orlando, fizeram com que estabelecesse uma excelente relação de amizade com os computadores, duradoura, ao ponto de tirar vários cursos e arranjar este emprego como programador.

Esta foi uma das formas que encontrei para agradecer ao homem que me devolveu à vida, que me deu tantas lições de humanismo, sem precisar de me ensinar orações ou convidar a aparecer na missa...

Apareci muitas vezes, e ainda apareço na igreja. Queria perceber o porquê de estar ali, queria agradecer a quem me ajudou a viver uma segunda vida.

Peço desculpa por ter ido tão longe. Afinal de contas, só queria saber se aceitas casar comigo.

Esse teu sorriso é um sim?

1 comentário:

Anónimo disse...

Parabéns a todos os participantes!