3 de outubro de 2017

Menção Honrosa 2017

Vagões

Estava apeada no jardim, entretida a observar um comboio em movimento. Era um comboio metafórico, de carruagens humanas, que se dirigiam em linhas de espontânea criação. Cruzavam-se, mas não colidiam. O caos era organizado. Um ensaio, pensei. Mas não. Era uma manhã normal.
Pelo desábito recorrente, ou pela insuficiente compreensão do que no mundo existe, peguei nessa fresca manhã e desconstruía. Quis saber seu maquinismo, sua mecânica, as leis físicas que a governavam. Nenhuma achei. Eram demasiado transmutáveis para as definir. Tudo isto é assim, e poderia ser o seu contrário também. Quis-me recostar no paradoxo. A constatação, porém, era aflitiva. Aquela aparente ordem mecânica tinha por base um contracto moral – valores que dirigiam os comportamentos em amplos carris sociais. Naquela sociedade, a prevenção da colisão era a norma reinante, numa outra, o choque talvez imperasse. No fim, sobrou-me essa peça indesmontável. Deduzi que fosse aquilo a que se chama moralidade.
Parecia uma base de construção absurda, não por carência de lógica, mas pela amplitude de resultados que podia assumir. No fundo, os comportamentos fluem numa certa direcção, mas poderiam fluir noutra. A prova está nas sociedades de distantes estações, cujos comboios podem não ser vistos, mas cujos ecos ressoam até nós. Talvez seja isso, pensei de mim para mim, pois que àquela hora nenhum outro vagão dispunha. Talvez a moralidade esteja viva e seja orgânica e, tal qual célula, se diferencie. Se assim for, nada se perder, à semelhança do mundo físico, quedando-se em perpétua transformação. Talvez se inicie por egoísmo, numa protecção instintiva do eu que com o outro se abstém de colidir, e se alargue, em benevolência, para valores que transcendem a individualidade e encontram fim em si mesmo, no acto de retidão, ainda que sem beneficio próprio. Talvez seja essa transformação a utópica: a felicidade achada no pleno bem-estar do outro.
Houve um comboio que colidiu. Os vagões tombaram num estrépito gutural. Ganhei certeza. A moralidade não se perde, claro que não, mas pode ser difícil de a encontrar.

Márcia Filipa Freire Dias da Costa


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