3 de outubro de 2017

2º Prémio 2017

Cronilógica de um mundo ao contrário
“Tal como no mundo físico, no mundo moral nada se perde”
Hernâni Cidade
O mundo avançou.
E debaixo de um céu de azul profundo, substituíram-se as grutas pelos apartamentos. As mãos abandonaram os gestos desconcertados, forjados com a rudeza do pó, e armaram-se de garfo e faca na senda de uma aventura dos novos tempos. Os incisivos, ávidos de vida, abdicaram de rasgar a carne mal assada, quase crua, para se rejubilarem no deleite de um prato meio cheio a casar com um status social meio vazio. Os pés descalços, castigados pela terra, passaram a deslizar em duas rodas, deixando num passado imperfeito o valor das coisas simples para passar a correr atrás dos segundos perdidos sem tempo. Os pueris sons que ecoavam nos primórdios dos tempos encetaram os primeiros passos, cresceram, maturaram, tornaram-se adultos.
E a Língua nasceu. E vieram os exércitos da sintaxe, e da semântica, munidos dos ismos e dos ónimos. E nasceram as ideias.
O céu, o tal de azul profundo, ganhou riscos de branco como um quadro em que se esboçam os primeiros traços. A terra desordenada e livre, encarcerou-se entre linhas de negro e paredes de pedra.
E o Homem mudou.
E com ele, o ontem transformou-se no hoje. Já não se “atira o pau ao gato”. Leva-se o gato a passear, porque os animais, há que protegê-los, que também tem direitos. O “lobo”, já não é mau nem come a avozinha. Agora a avozinha tem um lobo de estimação, porque os lobos, há que os preservar, que já há poucos. A tartaruga já não é mais esperta que a lebre nem chega primeiro a lado nenhum. Chegam juntas. Porque todos somos iguais, e a igualdade, há que lutar por ela. E o lobo também já não destrói a casa dos três porquinhos (sim, o lobo, outra vez) ajuda-os a construi-la e depois vão todos jantar fora. Porque devemos ser todos amigos, e o bullying, há que combatê-lo, que é coisa feia.
Porque as ideias e os valores, esses, não desaparecem, adaptam-se, transformam-se. E ainda que o mundo dê meia dúzia de voltas, envolto na poeira dos tempos, nada do que fomos, deixamos de ser. Mesmo sem pau para atirar ao gato, nem lobo para ser mau, as histórias continuam a transmitir mensagens que ficam. E o céu azul? Esse, ainda que de muitas outras cores, continua profundo, porque nada se perde, tudo se transforma.

Carla Patrícia Pires Martins

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