1º Prémio
a vida im’perfeita de josé redondo
um conto sobre um homem grande e o simples universo
Se levanta o mundo novo diante dos olhos modernos.
Que nenhum homem ouse travar o avanço da corrente.
Antes se abandone no movimento, crente.
É essa a lei universal.
o vendedor de mentiras
Ao dia vinte e oito do mês, o homem maior da repartição de finanças falou ao mais pequeno. Ao dia vinte e nove, veio a carta registada com carimbo e rubrica do homem maior do que o maior da repartição de finanças. E, ao dia trinta, já José Redondo está sentado diante do vidro translúcido da sala de estar virado ao arvoredo do parque público a tomar o chá da tarde com a companhia habitual. É a mãe quem diz. Agora que tens o teu tempo para cuidar da tua vida, vou descansar da minha. E nessa mesma noite escreveu o testamento, com bens heranças e vontades. O andar num prédio da grande avenida, com vistas para o lago tão comido pelas raízes e ramos. Um curto chão na periferia, com buganvílias enlaçadas numa cerca e um moinho de vento. O automóvel com estofos de pele tratada e rádio de cassetes. A chaleira em cobre fino. O quadro oferecido pelo homem maior do exército no enterro do marido. A sepultura com a estátua em granito de um anjo acusador. E a poltrona em veludo verde musgo colocada confortavelmente perto da janela. Assim leu José Redondo ao primeiro dia do outro mês, quando a mãe terá sido levada pelos senhores da funerária com o mesmo fato e a mesma gravata do velório do senhor sargento, o pai. Em nota final, com uma caligrafia mais branda e escorregadia, que o filho continuasse a ajudar com a quantia certa de cem moedas a casa de alienados da guerra, onde o velho sargento Redondo acabou os dias a contar mortos e viúvas e que, porque ainda vai a tempo, possa ter uma mulher. Nos dias primeiros do mês, o homem filho viu o pó cair na mobília rebuscada da sua infância, cómodas e gavetas com tantas memórias e ausências. Retratos sem o pai, retratos só com o pai. Na hora certa, quando o sol se pendurava nos ramos secos do arvoredo em Outono, José Redondo alinhava precisamente a poltrona de peludo verde musgo diante da janela mais suja. Com a mesma delicadeza, servia a infusão de ervas em duas chávenas. Ainda perguntou. A mãe supõe que seria mais contente com outra mulher, mas onde posso encontrar uma criatura bem formada que saiba conhecer a vida além do que os olhos vêem? A defunta não respondeu, mas a vista do filho caiu nos grandes edifícios levantados do outro lado do parque público. No mas íntimo da cidade, onde José Redondo decorou o número do autocarro e o nome da paragem junto da repartição de finanças onde trabalhou trinta e nove anos, estaria, então, uma possível mulher com as qualidades que sempre considerou prementes numa pessoa. Seja ela de curvaturas fêmeas ou saliências masculinas. Sete dias antes da andança, meteu-se em limpezas e consertos. Alinhou as lombadas dos livros por grandeza, os sapatos por tonalidade. Levantou os móveis e tornou a colocar nas marcas do tempo, brandiu as cortinas em floreados e endireitou as molduras antigas bem entranhadas na parede. Ao imaginar-se a cruzar com a suposta candidata, gostaria que viesse ao seu andar nos arredores e provasse os biscoitos de figo que a mãe deixou antes de morrer. Como de costume em momentos distintos, usará a grafonola. Também fará um chá pouco carregado de cavalinha e canela e, com a mulher sentada na poltrona que fora da madame senhora Redondo, apreciará à luz do sol cadente as suas feições e maneiras. A pergunta será única. O que vês por esta vidraça? Para a mãe, diante daquela vista por mais de setenta anos, era o mundo que se apresentava nos mais distintos estados. Era como se ela lhe lesse o privado, o estado da alma universal. José Redondo estava habituado a vir do seu ofício e sentar-se tão perto a ouvir-lhe as poesias e ideias. Também a sua mulher terá de lhe contar o mundo, esse redondo de terra que sempre o afligiu e preferiu ver pelas palavras de outro latejo, mais lento e seguro. Sacudidas as poeiras e orvalhadas as plantas, engraxados os sapatos e bem esticada a camisola depois da camisa, José Redondo decidiu ser o dia certo. O céu mais pardo desenganaria a vista mais cega e tudo parecia mais claro naquela manhã. Com as mãos levou a colónia de flores ao pescoço e bruniu com os dedos ainda perfumados o cabelo tão liso e afilado. Tossiu, ensaiou a voz. Havia dias que não falava senão com a sua consciência. Venho pela tarde, senhora mãe. E calcou cada degrau do prédio como quem pisa o chão pela dianteira vez, com a incerteza dum velho escaldado e a leveza dum rapaz em esperanças. O porteiro ainda mais velho do que a mãe morta e o pai enterrado curvou-se na vénia do costume. Vai sair, menino Redondo? Com as rugas tão vincadas, José soltou o riso desengraçado de sempre. Será em passeio, também em labor. Conto voltar na hora do chá, com companhia. O ainda mais velho porteiro acenou, numa cumplicidade de rapazes. Bem notou o brilho nos olhos do filho dos pais defuntos, será vontade que leva no corpo já gasto. Sentou-se no banco da paragem, o autocarro veio na hora certa. Como de costume. O motorista era outro, mais jovem e desinteressado. Não disse bom dia e José terá percebido a morte do homem que o levou e trouxe por mais de cinquenta anos. Sem olhar para o relógio de pulso que já havia sido do senhor avô, levantou-se. Sabia exactamente o tempo entre um lugar e outro. Era a primeira vez que descia no lugar na cidade e não se conduzia maquinalmente ao serviço, onde exerceu a sua contabilidade com mérito mas sem reconhecimento. Nunca José Redondo se terá enganado num único número. Certo de mais. O senhor maior também assim achou, até lhe ordenar a reforma antecipada. José Redondo conformou-se, teria mais tempo para ver o arvoredo junto da sua mãe. Mas quis deus que assim não fosse e isso levava-o a aceitar melhor o pedido da senhora Redondo. Ter uma mulher. Andou mais até ao mercado, não faltariam senhoras a oferecer e outras a negociar. Raparigas e madames, vestidas com sensatez e ideias bem polidas. Na boca aperfeiçoou-se um sorriso nunca antes posto. Se o velho porteiro visse, diria amor. Que nenhuma outra coisa faz sorrir assim. Na grande praça, José Redondo parou. O coração também. Ouviu agora o batimento da cidade, as buzinas dos vendedores de rosas, os gritos das crianças despidas na rua, a sineta do eléctrico aligeirado, os travões dos automóveis ferinos, os vapores escaldantes dos ferros de engomar, o suor fétido dos homens das cargas, os ponteiros desacertados dos tantos relógios, as asneiras dos empregados revoltados, as ousadias dum patrão soberano, as persianas empoeiradas a serem corridas, os velhos a cuspir no chão. Viu as saias curtas e as pernas compridas, os seios salientes das blusas justas, os homens de mão dada a outros homens, os rapazes de cabelos compridos e camisas desabotoadas, os mendigos a protestarem a esmola, os homens da guarda numa farda comida, as baratas a serem esmagadas por tacões estreitos e tortos. As sirenes dos bombeiros sem seguro de vida, as luzes cintilantes das lojas em falência, os semáforos bruscos nos cruzamentos enganadores, as máquinas frenéticas da costura em caves húmidas, os homens do correio a selarem as cartas fraudulentas. José Redondo rodopiou no próprio corpo, o peito atulhado dum ar saturado e gritou. Por favor, parem o Universo. As crianças acabaram o choro agitador, as mulheres as falas libertinas, os homens o respiro. Por momentos, ouviu-se também o silêncio do mundo. Demorado, macio. Um fio de paz. O velho encurvado que vendia jornais perguntou. O senhor quer alguma coisa? José Redondo acenou que não. Virou costas, num andamento apressado. Seguia nos sapatos bem polidos para o andar nos arredores, sem mulher nem desejo. Na cabeça, apenas aquela poltrona de veludo verde musgo e a janela virada ao arvoredo manso onde a vida se desenrola mais devagar. Quem o ouviu, ainda contou. Apenas disse. Quero apear-me.
Marlene Correia Ferraz
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2º Prémio
O herói
- Por favor parem o Universo. Quero apear-me… - sussurrava com voz de vento o velho louco, enquanto deambulava pelas ruas da vila, indiferente à dança das estações, ou cruzando a aridez das planícies.
O tempo nevara-lhe os longos cabelos e a barba hirsuta que lhe ocultava as rugas lavradas no rosto.
Caminhava descalço, vestido apenas com uma túnica branca, indiferente às pedras dos caminhos, ao cálido desconforto do alcatrão, aos cardos da beira da estrada, como se nada o pudesse ferir nem atingir.
Primeiro, a sua passagem causava estranheza, depois indiferença em quem o via. Era só mais uma criatura sem rumo, como outras que já por ali haviam passado: corpos ambulantes, cadavéricos, que pareciam ter perdido a alma em algum beco escuro duma rua erma, onde se haviam cruzado com a droga, o álcool ou outro vício qualquer.
Muitas vezes, as janelas e as portas fechavam-se, à medida que ele se aproximava. O seu aspecto causava desconfiança e receios infundados. Por vezes, atribuíam-lhe pequenos delitos, furtos inexplicáveis de quantias insignificantes – embora nunca houvesse qualquer prova contra ele.
Raramente respondia a qualquer pergunta, a frase murmurada era sempre a mesma, enigmática, estranha, às vezes enraivecida, outras resignada, sempre sem sentido:
- Por favor, parem o Universo. Quero apear-me!
Enfim, o que quererá dizer aquele doido? – indagava quem o ouvia. Mas não havia qualquer resposta e todos encolhiam os ombros com desdém.
Sobre o seu passado desconhecido circulavam várias histórias, que escorriam nas vozes do povo como afluentes de um rio caudaloso, desaguando sempre na censura ou na indiferença.
Uns diziam que ele ficara assim quando a mulher e o filho tinham falecido num acidente de carro. Acrescentavam que fora o álcool a causa da sua desgraça e também do fatídico acidente do qual havia sido responsável. A verdade é que ninguém sabia concretamente onde vivia nem como se sustentava. Outros garantiam que ele teria sido, talvez, um prisioneiro foragido, um criminoso endoidecido pela culpa, sem remédio para a sua alma atormentada. Havia quem dissesse que fora uma espécie de cientista, vítima de qualquer explosão, ou talvez um sonhador endoidecido por obsessões sobre-humanas (uma espécie de D. Quixote de La Mancha), ou por delirantes amores não correspondidos. Inventavam-se também histórias mirabolantes: que era um feiticeiro, uma espécie de bruxo prisioneiro do tempo, que praticava magia negra e podia lançar feitiços a quem o insultasse ou se intrometesse na sua vida. Imediatamente, se encontravam exemplos de estranhos rituais ou de acontecimentos aparentemente inexplicáveis: galinhas pretas desaparecidas, altares nas encruzilhadas…
Pareciam ser tantas as histórias que sobre ele corriam, como os anos que lhe haviam sulcado as rugas no rosto e curvado o corpo esguio.
A verdade é que vivera inúmeras vidas: havia sido médico, soldado corajoso, herói adiado, pai, esposo. Combatera na Guiné, fora o único sobrevivente de um ataque atroz que dizimara todo o pelotão. Sentira a vida do melhor amigo esvair-se-lhe nos braços, numa massa de sangue, perante a impotência dos seus conhecimentos de medicina. Depois, vingara-lhes a morte com a mesma crueldade irracional.
Anos depois, na noite em que havia deixado a esposa e o filho, tranquilamente em casa para receber uma condecoração, um incêndio ceifara-lhes a vida. Foi nessa noite, inicialmente de brilho, ofuscado pelas cinzas da dor e da morte que ele desejou pela primeira vez que o Universo parasse. Como poderia a terra continuar a girar quando uma dor tão forte lhe dilacerava a alma? Como poderia sobreviver sem lar, sem família, sem amor? A partir daí, começou a sua saga de criatura errante, sem rumo nem norte, ansiando apenas pelo fim.
Porém, naquela noite de trovoada tudo mudou. A chuva e o vento fustigavam a vila. Não se via vivalma pelas ruas, apenas ele, a alma penada solitária, balbuciando a sua frase, como uma eterna prece…
De súbito, um clarão rasgou o céu de uma luz tenebrosa. Simultaneamente, perto da ponte ouviu-se um estrondo. Um automóvel caíra ao rio e submergia-se rapidamente nas águas. Sem hesitar, ele mergulhou. A porta do carro não abriu, porém, conseguiu partir um vidro com uma pedra. Retirou uma criança que chorava assustada com o estrondo e, por sorte, se encontrava protegida pela cadeira. Sentou-a na margem e voltou a entrar na água gelada.
A mulher que ia ao volante estava inconsciente e um fio de sangue escorria-lhe pelo rosto. Parecia quase uma estátua desprovida de vida, uma pobre marioneta do destino. A criança continuava a chorar, ancorada na margem do rio, enquanto, desesperadamente, chamava pela mãe. Restava-lhe muito pouco tempo para a salvar e o homem sentia que as forças se lhe escoavam implacavelmente. O carro ia afundando no lodo, devagar. Os faróis dianteiros já haviam desaparecido. As portas não abriam, era quase impossível quebrar outro vidro. Os pulsos sangravam-lhe, a água gelada turvava-lhe a respiração. A chuva era cada vez mais intensa. As mãos escorregavam cada vez que tentava quebrar o outro vidro.
A mulher continuava inconsciente, enquanto as águas barrentas a iam sepultando.
De súbito, quando estava prestes a desistir, o vidro cedeu. Reuniu as últimas forças para desencarcerar a vítima, e, a muito custo conseguiu reanimá-la. Empurrou-a para a margem, para junto do filho.
A partir desse dia, o homem nunca mais foi visto. Teria abandonado definitivamente a sua peregrinação sem norte? A verdade é que a jovem mulher acreditou que um anjo a havia salvo a ela e ao filho. No estado de semi-inconsciência, em que se encontrava na altura, não identificou concretamente o seu salvador.
De novo, as histórias acerca do misterioso desaparecimento do homem germinaram como boninas ao despontar da Primavera.A verdade? Será tão relativa e diáfana como todas as histórias imaginadas. Mas podemos acreditar que, naquela noite, vinte anos depois de a sua existência lhe ter sido roubada, após ter salvo duas vidas, as forças o abandonaram definitivamente e o seu universo parou. O velho mago, bruxo, convertido em verdadeiro herói, apeou-se e repousou definitivamente, além-tempo e além-vida, numa etérea colcha de fé e de luz.
Dora Maria Nunes Gago
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3º Prémio
O CARROSSEL
O recinto da feira fervilhava de vida. Os miúdos e graúdos atropelavam-se na ânsia de percorrerem todas as atracções: o labirinto; os carrosséis; os carrinhos-de-choque; a barraquinha de tiro ao alvo…
- Venham dar uma voltinha no carrossel!... Universo, o melhor carrossel deste recinto!! Meninos e meninas… - gritava o Sr. Humberto, o dono do carrossel Universo. – Estrelas, planetas, cometas, tudo a girar! Venham, meninos e meninas...
Nas bilheteiras do carrossel, onde o Sr. Pereira trocava o dinheiro por fichas, formava-se uma longa fila. Alguns putos, mais descarados, furavam a ordeira linha e passavam à frente dos outros.
Soava a forte campainha, que se fazia ouvir acima da balbúrdia da feira, anunciando que a volta tinha terminado. Os miúdos da próxima volta invadiam o carrossel, como feros índios, em pé-de-guerra, ao ataque. Contrariados, e literalmente expulsos pelos recém-chegados, os catraios da volta anterior saiam dos assentos. Alguns miúdos permaneciam nos seus lugares, segurando de forma visível, na sua mão, a ficha que lhes daria acesso à próxima volta e que evitaria a sua expulsão pelos índios invasores. Os índios ocupavam os lugares livres, soltando gritos de guerra a plenos pulmões. A campainha dava então três toques seguidos, sinal que o carrossel iria iniciar uma nova volta. O filho do Sr. Humberto, um adolescente com ar de fuinha, cabelo rapado, piercings nas sobrancelhas e brincos nas orelhas, dava a sua volta pelos assentos do carrossel e recebia, das mãos dos miúdos, a ficha que lhes permitia efectuar aquela viagem. Rudolfo - assim se chamava o fuinha dos piercings - aproveitava para espetar uns violentos pontapés nos assentos do carrossel. Nunca se percebeu bem porquê: se fazia isso por detestar o seu trabalho, se para assustar os barulhentos putos que ali seguiam na sua volta, ou se era simplesmente por pura maldade. Talvez pelo facto de ser obrigado a passar ali todos os dias da sua juventude, enquanto os outros adolescentes iam à escola e tinham a sua vida social. O fuinha era obrigado a trabalhar de manhã à noite. Se não estava a recolher fichas no carrossel, estava a desmontar o carrossel, a inspeccionar o carrossel, a montar o carrossel, o carrossel, o carrossel, …
Para além dos pontapés de Rudolfo, o carrossel também era atingido pela fúria dos miúdos, que se agarravam aos varões e os abanavam violentamente. Outros, gravavam na madeira dos assentos, as suas iniciais. Alguns, mais velhos, divertiam-se, grafitando os bancos do carrossel, pela calada da noite, quando a feira já tinha sido encerrada. Por vezes, os feirantes apanhavam os artistas e obrigavam-nos a limpar as obras de arte acabadas de fazer e aproveitavam para lhes dar uns sopapos.
E, o que devo eu pensar? Já acompanho este carrossel há cerca de vinte anos, quando o Sr. Humberto o comprou a um feirante espanhol e o remodelou, mudando-lhe o nome de “Los Animales Salvajes”1 para Universo e trocando os bancos com representações de animais - já muito carcomidos e partidos - por novos bancos que representavam estrelas, planetas, cometas, satélites, naves espaciais. A miríade de corpos espaciais foi feita por encomenda, por um carpinteiro amigo do Sr. Humberto.
A pintura ficou a cargo da D. Amélia, a esposa do dono do Universo. E que dotes de pintura a pobre senhora tinha – emprego esta expressão, porque a D. Amélia faleceu há dois anos, deixando todos nós mais pobres.
Mas dizia eu, que nasci há vinte anos, na figura de um belo planeta azul, decorado pela mão da D. Amélia. Aliás, a D. Amélia decorou todo o carrossel com tanta destreza e bom gosto, que eu me sentia extasiado ao ver em roda de mim todo aquele magnífico universo, limpo, bem-cheiroso, que girava, girava…
Já conheci muitos recintos de feiras, muitas pessoas, muitos miúdos. Mas deixem-vos dizer um segredo: quem vê um recinto de feira, vê todos. Quem vê a populaça de uma feira, vê todas. São todos iguais entre si. Corpos amorfos procurando um pouco de alegria artificial, nesta vida rotineira...
Agora, com tanta volta, com tanto barulho todas as noites, com o desmonta aqui, monta ali, os pontapés do fuinha, os grafiti, a sujidade que se acumula e se entranha por mim e pelos restantes corpos espaciais do Universo, sinto-me tão mal, tão agoniado que só me apetece sair daqui. Sair e ir para um local sossegado, relaxante. Longe desta extenuante rotina. Sem fuinhas, sem índios em pé-de-guerra, sem grafiti, sem poluição. Longe do rodopiante e enorme Universo. Gostaria de ingressar num Universo paralelo... Numa realidade alternativa... Tudo seria preferível à vida que levo!...
Apetece-me gritar. Gritar bem alto, acima do barulho da feira, acima da campainha do carrossel, para que todos possam ouvir:
- Sr. Humberto, fuinha, Sr. Pereira…Alguém...Sou eu, o planeta azul… Por favor, parem o Universo. Quero apear-me!
FIM
João Manuel da Silva Rogaciano
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Prémio Juventude
A Tristeza Além da Sorte
Eu vinha de uma terra muito distante, bonita e cor-de-trigo, lá longe, onde o mar se perde de vista. Lembro-me da fome, da pobreza e tudo o mais, mas também do colo da minha mãe e do choro dos meus irmãos.
Eu queria ir à escola. Era o meu sonho. Ouvia dizer que todas as crianças do mundo tinham o direito de aprender coisas novas e não trabalhar. Eu trabalhava. Ajudava a minha mãe com os meus irmãos e plantava o que quer que fosse comestível.
O meu pai desaparecera. Corriam boatos de que um leão o comera. Não guardava recordação nenhuma dele.
Vivia feliz na minha terra, embora não soubesse o meu nome. Ninguém sabia.
Um dia, a minha mãe adoeceu e, mais tarde, morreu. Eu e os meus irmãos ficámos entregues à solidão. Não por muito tempo.
Certa tarde, chegaram os homens da terra civilizada. Tinham a pele clara, encardida pela poeira, e olhos vazios de sonhos. Chamavam-se “doutores” uns aos outros e falavam fria e rapidamente, como se dessem ordens.
- Não temos tempo a perder! Montem as tendas! – Gritava um deles. Pareceu-me ser o mais velho e, talvez, o chefe. Andava de um lado para o outro. Sem querer, até tropeçou em mim e olhou-me, expressando tristeza ou outro sentimento qualquer, totalmente desconhecido – Como te chamas?
E eu, sem pensar, respondi que não me lembrava. Era verdade. Talvez fosse Aisha. E isso mesmo eu acrescentei.
- Aisha, queres vir comigo? Posso dar-te comida. Posso dar-te amor e carinho.
- Vai levar-me para a terra civilizada? Para a terra onde as crianças vão à escola?
Ele de imediato confirmou todas as minhas expectativas.
Dentro de cinco dias, embarcámos no que me informaram ser um avião; na altura considerava-o um pássaro metálico de tamanho monstruoso.
Chegados à grande cidade, encaminhámo-nos para o nosso destino final: uma casa grande de dois andares, de paredes duras, provavelmente de tijolo, pintadas de cores deprimentes. Mal nos viram, as auxiliares daquela “instituição” convidaram-nos a sentar nos sofás da sala de visitas, onde também nos ofereceram bolachas enormes e deliciosas, que devorei incessante e alegremente até me doer a barriga.
- É aqui que nos despedimos, Aisha. – Sussurrou-me o meu suposto amigo branco. E eu que julgava que o Doutor me iria levar com ele!
- Mas eu nem gosto deste sítio. – Repliquei, refazendo-me da surpresa.
- Hás-de gostar, vais ver! Tens tantos meninos da tua idade para brincar contigo! Tens estas bolachas maravilhosas… Que queres mais?
Alguém que goste de mim a sério, repetia a vozinha na minha cabeça.
Essas foram as últimas derradeira palavras que ouvi da boca da única pessoa branca que eu alguma vez pensei amar-me e querer-me bem.
Daí em diante, aprendi quem não podemos elevar as nossas expectativas, se dependerem de outrem.
As crianças do orfanato nunca me aceitaram nem será hoje que essa situação mudará. Sou diferente delas e aceito isso quase como um elogio. Sou inteligente, embora calada. Apenas a pele nos diferencia e conseguem ser mesmo cruéis. Fora do orfanato, na escola, gozam comigo por vestir roupas usadas e demasiado largas para o meu corpo pouco desenvolvido. Os livros que leio e que me dão na escola pertenceram sempre a alguém que os amachucou, rasgou ou deixou cair na lama.
No outro dia, um rapaz mais alto e mais forte quis bater-me. Ameaçou-me e riu-se das minhas fraquezas. Fugi a correr e tentei lembrar-me do mais importante: não tenho culpa de quem sou, considerando-me uma sortuda por poder estudar. Não tive a sorte deles, ter uma família que me abrace ou me feche no quarto de castigo.
A rotina diária não passa disso: uma rotina. No orfanato, o problema reside na minha cor; na escola, nos meus pertences (partilhados, na maioria).
Na verdade, nada me pertence, nem um nome. Aisha?! Talvez, mas fui eu que o inventei à pressa, antes de alguém me desviar da minha rota predefinida.
Haverá, algures, um sítio melhor? Se houver, poderei mudar-me? Na melhor das hipóteses, desejava que parassem o Universo, de modo a que me fosse permitido saltar e esconder-me… Apear-me…
Catarina Araújo Valentim
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1ª Menção Honrosa
Uma mentira na eternidade
“Por favor, parem o Universo. Quero apear-me.”
Anónimo
O professor Fagundes Migalha apanhou varicela no mesmo dia em que, no céu, apresentaram a Deus o relatório final sobre o comportamento dos homens, o propósito da fé e os destinos da alma. No céu e na terra, explodiu então quase em simultâneo, um cataclismo de indecisões que deixou em suspenso o futuro da humanidade.
Na terra, as aulas estavam a começar por todo o hemisfério Norte, e o professor Fagundes Migalha, que em trinta e três anos de docência nunca tinha faltado a uma apresentação aos alunos, viu-se confinado à solidão do T1 que alugou após o divórcio e às pantufas puídas que faziam lembrar-lhe o desgaste da profissão. Tal como as pantufas, o ânimo do professor apresentava buracos por cima, por baixo e pelos lados, além de arrastar atrás de si alguns fios de desprendimento.
Mas a solidão provocou um efeito devastador. Ao contemplar as pantufas e ao verificar diante delas o paralelo que traçavam com o interesse que nos dias de hoje se atribui ao conhecimento adquirido, à ciência e à apetência pelas artes, correu-lhe uma lágrima pela face esquerda, talvez ali despejada pelo diabo.
Fez um chá. Desligou a televisão que mal lhe servia já para saber como ia o mundo, e esperou que no calor da caneca, encontrasse a exactidão de um pensamento útil, o conforto de uma certeza ou até um sinal do além disfarçado de coisa miúda.
Nada lhe ocorreu. Deu então duas voltas à sala e parou em frente à porta da varanda. Abriu-a e achou-se diante da imensidão dos quintos andares de onde se avistam outros quintos andares, além do recorte dos telhados que enchiam de bicos a linha do horizonte. Era noite. Tentou sacudir o vazio a olhar para as estrelas durante uns dez minutos e quando já se lhe acrescentava ao espírito a desolação de não ver nenhuma estrela cadente, sentiu comichão na testa. Coçou e percebeu que tinha rebentado a primeira bolha de varicela.
Entrou na sala e foi até ao espelho da casa de banho. Não teve alternativa. Pegou no betadine e pontuou a primeira mancha no alto da testa. Suspirou.
Voltou à varanda e ao vazio da noite sem estrelas cadentes. Deixou correr meia hora. Pouco depois, viu três adolescentes na rua que se aproximavam e espreitavam para o interior dos carros estacionados. Ficou à espera que passassem e que o incómodo daquela dispersão fosse breve. Mas os adolescentes pararam junto do carro do professor. Olharam e um deles tirou do bolso uma chave de fendas que começou a tentar introduzir na fechadura da porta dianteira. O professor sentiu correr-lhe uma centopeia pelo esófago e teve um gesto irreflectido: pegou no vaso com uma sardinheira que tinha sido deixado pela inquilina anterior e apontou-o à calçada. No segundo seguinte, deixou-o cair.
O vaso a quebrar-se na calçada fez o estrondo dos trovões de Verão e os rapazes correram em todas as direcções. Várias pessoas vieram à janela e o professor escondeu a cabeça. Deixou-se ficar. Quando a noite recuperou a serenidade, o professor emergiu do fundo da varanda e olhou para o céu. Tremia. Não sabia se ele ou o céu. E correu-lhe mais uma lágrima. Então, olhou para o amontoado de estrelas mais visível do firmamento e sussurrou: “por favor, parem o Universo. Quero apear-me.”
No céu, este clamor subtil foi escutado de forma um pouco equívoca, já que o relatório sobre a fé dos homens ocupava os espíritos como numa grande multinacional se esmiúçam os relatórios de vendas. Havia confusão. Mesas de reuniões com entidades diversas a folhear páginas cheias de gráficos e portas a bater, numa azáfama de reestruturação iminente.
Foi então que na sala do último andar, alguém chegou ao topo da mesa mais longa e fez notar à Entidade Suprema que era necessário agir de imediato.
- Talvez pudéssemos começar por ouvir a prece deste professor…
A Entidade Suprema levantou os olhos. Primeiro para a folha de papel em que o assessor levava a frase escrita e logo a seguir para os olhos do próprio assessor, que vazavam laivos de esperança.
- Mas parar o universo como? O universo está em expansão acelerada. As consequências seriam incalculáveis. Até para mim.
O assessor tentou então fazer parte da solução e não parte do problema
- Talvez o professor deseje apenas que pare o mundo... A terra…
A Entidade Suprema recostou-se – Bom… Isso já é outra conversa.
- Claro, teríamos de recalcular apenas os destinos de seis mil milhões.
- Claro…
Com a máquina de calcular ao lado, a Entidade Suprema fez uma operação rápida e voltou a olhar para o assessor.
- Temos de parar também a lua!
- E porque não?
- Receio que os chineses… - A Entidade Suprema voltou a recostar-se, agora com uma dúvida ainda maior – Mas vamos lá ver uma coisa! Ele disse para onde queria ir? Apear-se onde?... No céu ou no inferno?
- Isso não ficou claro – sublinhou o assessor a franzir os lábios.
- Bem, temos de agir já, não temos?
- O relatório… não nos deixa grandes possibilidades.
A Entidade Suprema encolheu os ombros, pegou na folha com a frase do professor, fez-lhe dois rabiscos por baixo e estendeu-a ao assessor – Avance!
Minutos depois, materializava-se na terra, junto à varanda do professor Fagundes Migalha, uma escadaria à maneira da Broadway, com um primeiro lance de degraus com três metros de largo e que um pouco mais a cima se dividia em duas. Um pouco mais atrás, um morcego ficou suspenso no ar, numa quietude de personagem de Matrix. Tudo estava parado. Excepto o professor Fagundes Migalha.
Numa espécie de êxtase de quem contempla uma sarça-ardente, o professor saltou a balaustrada da varanda e alcançou com o pé o primeiro degrau. Sentiu que pisava chão firme e começou a subir. Mas quando a escadaria se dividiu em duas, parou. Percebeu que de um lado tinha o caminho do inferno e do outro, o do paraíso. Hesitou como quem se prepara para uma qualquer eternidade, respirou fundo e olhou parta trás. Lembrou-se então dos chinelos puídos, do vaso com a sardinheira, da borbulha com betadine e voltou a olhar em frente.
De repente, o professor viu uma estrela cadente atravessar o céu e ficou parado, à espera de perceber as consequências profundas daquele fenómeno celeste. Afinal, o universo não estava parado. Apenas a terra. E do olho esquerdo, começou a correr-lhe um fio de lágrimas, claramente espremidas pelo diabo.
- Mais uma mentira! Até o céu foi capaz de me mentir…
Pedro António Fernandes Canais
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2ª Menção Honrosa
Lúcia Lima
Lúcia Lima olhou para o velho relógio de parede andavam os ponteiros pelas cinco da manhã. Era cedo. Uma sede estranha acordou-a de um sono que há muito não a deixava dormir. Um seco na boca, um gosto qualquer impreciso, semelhante a algo esquecido. Levantou-se da cadeira que ficava sempre diante da chaminé, onde repousava os ossos despertos da madrugada. Mais uma vez esquecera-se de acender o lume. Olhou para os seus hóspedes invisíveis, uma criança, uma velhota, um homem de barbas com os seus duzentos anos. Para este falou:
- Já viu para o que me deu agora?
Naquele dia, ao chegar da estação, encontrou-os a um canto dos escombros em que ficara a sua cozinha, a única divisão da casa que permanecera de pé. Sem espanto, entendeu o cumprimento que lhe fizeram, reverentes, numa língua engraçada e impronunciável. Por qualquer motivo decidiu que eram checoslovacos, e checoslovacos ficaram, refugiados de uma vida qualquer que já não desejavam e que, por isso, já não lhes dizia respeito.
- Para que está com isso agora… - disse-lhe o homem, cofiando a longa trança acinzentada que lhe pendia do rosto. – É o mesmo todos os dias. Também não está frio…
Não estava, pelo contrário. Continuava a entrar aquele calor morto dos últimos… Quantos, trinta anos? No dia em que os encontrou instalados no canto da sua cozinha, nesse dia em que embarcou Eduardo para uma viagem de esperança que se supunha breve, então sim, estava um frio de rachar. Falava-se de uma frente fria vinda da Islândia, gelo sem Inverno que ameaçava hibernar os campos, a vida dos agricultores e dos recém-nascidos. Mas depois o céu avermelhara cores rasgadas e caíra uma chuva de corpo absurdo, manteiga derretida que derrocou casas e cingiu culturas por muitas épocas.
- Cheguem-se aqui para o fogo – dissera-lhes. Mas então reparara na chaminé sem lenha.
- Deixe estar. Não está frio.
Não estava. Passada a tormenta, um calor infernal assentara ali a sua poeira de diabo em busca de mau caminho.
A convivência com os seus hóspedes começou por ser reservada. Eles próprios raramente falavam entre si. Pareciam esperar, com uma paciência infinita, por uma hora que, não tinham dúvidas, acabaria por chegar. Tão pouco se lhe dirigiam com frequência, sobretudo a partir do momento em que perceberam que o silêncio não a ofendia, pelo contrário, convivia com ele perfeitamente. Passavam as noites juntos acordados nesse silêncio.
E assim foi crescendo a amizade deles, principalmente a de Lúcia com o homem das barbas seculares. Encontravam-se nos olhares, que começavam a traduzir géneros de uma compreensão absoluta. Se ela deixava escapar um suspiro, ele anuía como se tudo desvendasse; quando ela exasperava, incapaz de sossegar, era na cumplicidade dele que apaziguava. Evoluiu de tal forma esta intimidade, que um dia o velho passou a acompanhá-la à estação, mesmo que apenas a seguisse. Ultrapassava-a no seu passo lento quando ela parava para trocar novidades com Pôncio Justo, o cego, deixava-se depois ultrapassar por ela no seu andar de formiguinha atlética.
Lúcia Lima e o cego entendiam-se. Era um homem estranho, de idade indeterminada, de quem se dizia falar com as almas. Fora ele, com o seu olfacto de cego, quem pusera a Lúcia esse nome que não lhe pertencia, mas que de tanto ouvir lhe passou a soar com naturalidade de um baptismo imemorial. Há muito que ela estava tão pálida que já quase não podia ser vista a olho nu, e no entanto, Pôncio Justo via-a cada vez mais definidamente:
- A comadre está mais nova.
- Não brinque comigo, compadre, ninguém fica mais novo. Até os mortos envelhecem…
- Não estou a brincar… às vezes o tempo brinca com as idades da vida. A comadre está mais nova, sou eu que lho digo… Vê-se pelo cheiro. – Palpou o ar com o seu nariz experiente e proclamou a exactidão daquele odor. – A comadre cheira a Lúcia-lima!
As capacidades sensitivas do cego eram tão obscuras que muitos duvidavam da sua sanidade mental. Não raras vezes era visto em amena cavaqueira nas ruas, falando para ninguém. À noite, parava à porta da taberna a observar com os seus olhos mudos o que chamava a transumância das estrelas. Encostava-se depois ao balcão e informa para quem quisesse ouvir:
- Cassiopeia foi para norte!
Na estação, o homem das barbas seculares sentava-se noutro banco, ficava a matutar sem expressão, espectador perdido, ouvindo Lúcia Lima contar para o marido ausente:
- Sabes lá o que práqui vai…
Mentia, apimentava as histórias, tinha jeito para contar. O checoslovaco via as imagens desenhando-se, entendia-as sem as perceber, como se assistisse a um filme estrangeiro.
À entrada da noite no céu sem nuvens, despediam-se da demora e juntos palmilhavam de volta os três quilómetros do regresso. Cruzavam em silêncio caminhos estéreis e atalhos vãos, e em casa, Lúcia voltava a abandonar-se na cadeira em frente à chaminé vazia. No dia seguinte, às cinco da manhã, levantava-se sem ter pregado olho, era cedo, tinha aquela sede esquisita, a voz suja de um gosto anónimo. Queixava-se do lume de chão.
- Já viu para o que me deu agora, compadre?
Mas não estava frio, continuava aquele calor morto que ameaçava queimar os séculos.
Só trinta anos volvidos, o velho decidiu acabar com o rasto daquela escolta diária e silenciosa.
- Hoje vamos juntos. E vamos todos.
E então seguiram juntos, à frente Lúcia com seus passinhos frenéticos, depois os dois velhos carregados de bagagens perdidas, finalmente o menino pontapeando pedras imaginárias.
Na estação, Pôncio Justo aguardava a comitiva com derradeiras novidades:
- O alemão diz que não se lembra das nuvens. Que o sol lhe queima o sangue, mas que o que lhe dói é não se lembrar… Tentei descrever uma nuvem, que era assim como um cheiro branco que vem antes da chuva…
- E ele? – inquiriu o checoslovaco, uma curiosidade que não suspeitava ter.
Lembrou-se… Lembrou-se e depois não aguentou as saudades que tinha delas…
Mas a Lúcia, o coração a vapor por fim estacionado, já não interessava a depressão do alemão.
O comboio chegou na hora marcada de quem nunca perdeu a esperança, sem cadências sonoras de máquina constante ou ornamentos de névoa de sonho.
- Vem no horário – notou o cego.
Lúcia sentiu a garganta húmida e um gosto esquecido evadiu-se-lhe da boca.
- Parece que sim…
E de facto, sentiu-se mais nova. A porta de uma das carruagens abriu-se diante dela, e a palavra serena e forte de Eduardo estendeu-lhe a mão com naturalidade.
- Demorei?
- Nem por isso – disse ela, a voz estranhamente limpa. – Só passou um dia de cada vez…
Lúcia observou os seus hóspedes entrando noutra carruagem mais abaixo, reencontrando-se com o seu próprio tempo. Acenou apenas um leve adeus silencioso, que fora o idioma do seu entendimento, e subiu para o trem.
Nessa noite, na taberna, Pôncio Justo contou da chegada do comboio com o regressado Eduardo e do embarque de Lúcia Lima e do seu séquito sem fronteiras. A caminho das estrelas ou do futuro, em qualquer dos casos destino certo para quem tanto e por tão pouco se amara… Mas o relato não colheu excessivo interesse entre os convivas, falecidos demais para as conjuras da vida.
A única reacção ocorreu secreta no pensamento sibilino, as ideias roucas de desuso, do taberneiro Duarte Veiga. O dia em que a violenta tempestade caiu do céu para dar quebranto aos sonhos dos homens; Lúcia soterrada no monte recém terminado do casal; Eduardo mais adiante, fundido na amálgama retorcida da carruagem, morte em dobro do amor… Desde então comboio algum voltara a entrar na estação, destruída no seu orgulho arquitectónico, com ervas de metro e meio a invadirem a pauta silenciosa dos carris… Tudo isto Duarte Veiga recordou, mas nada disse. Atirou um gesto de desprezo à novidade, mudou o copo de mão e regressou aos esquecimentos, alheio aos desvelos do cego que, com entoação de certezas, finalizava formas à sua maneira de ver:
- Ocasionalmente, o Universo interrompe a sua marcha infinita para esticar os ossos… Nesses apeadeiros, há os que entram e os que saem.
Virou o pescoço para o céu que começava a acinzentar e, com o rumor das primeiras gotas de chuva a silvarem na terra seca, os olhos marejados por um vento subitamente refrescado, ouviu-se completar o próprio pensamento:
- E há os que por fim caminham juntos…
Pedro Miguel da Cruz Pereira
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3ª Menção Honrosa
O SR. FELIZ
Era Domingo de manhã. O dia amanhecera envergonhado, com um sol pálido a espreitar por entre as nuvens que se espraiavam num céu pastel. Fiquei mais uns minutos na quentura dos lençóis, tentando espantar a preguiça e ganhar coragem para enfrentar o dia.
Domingo era dia de desporto. No dia do Senhor, penso que Ele aprovaria que os seus seres imperfeitos, sacudissem o mofo da semana, desemperrassem as articulações e arejassem as ideias. Isto, claro está, se Ele pudesse opinar nos dias que correm.
Naquele dia estava particularmente abespinhada. Tinha tido uma semana difícil, num mês difícil, quase no final de um ano difícil. Sentia-me submersa num mar de sargaços, sem conseguir manter-me à tona por muito tempo. Faltava-me o ar e a vida pesava-me como a pedra gigante de mármore entre as mãos de Sísifo. Um eternizar de dias iguais, sem planalto no cimo da montanha, no qual repousar das atribulações. Apetecia-me gritar «Por favor, parem o Universo. Quero apear-me.» Mas como o Universo sofre de deficiência auditiva, em vez de me apear, meti as pernas ao caminho e dirigi-me para o choupal.
Era um ritual que cumpria religiosamente desde há alguns anos. Começara por necessidade física e tornara-se um vício, não só do corpo, mas da mente e da alma. Aproveitara aquelas caminhadas para higienizar os pensamentos e depurar a linfa.
Entrei no percurso do costume e estuguei o passo, olhando para o relógio para cumprir o tempo que a mim própria me impunha. Comecei por programar a agenda da semana, revi os compromissos assumidos e até preparei as refeições da semana. Em seguida, a mente vagueou para os planos sempre adiados, as dificuldades económicas, os desgostos afectivos de uma vida já madura.
- Posso acompanhá-la, companheira?
A voz fez-me estremecer, tal era o alheamento em que me encontrava. Não vira os grupos que corriam à minha frente, os amigos da bicicleta em sentido contrário, os colegas de caminhada, de rostos já registados, os dois cavalos imponente, dos quais me desviei instintivamente. Caminhava apressada, marcando o ritmo de forma mecânica, alheia a tudo em meu redor. Uma voz assim, vinda do nada, causara um sobressalto que se traduzira num tremor involuntário.
- Assustei-a, menina?
- Desculpe, estava absorta nos meus pensamentos e não o tinha visto…
- Pois eu já a vi muitas vezes aqui a esta hora. Tem uma passada semelhante à minha.
- Peço desculpa, uma vez mais, mas quando começo a caminhar, não vejo nada, nem ninguém…
- Espero que não se ofenda com a minha proposta.
Olhei-o de soslaio. Aparentava aí uns sessenta e muitos anos, num corpo admiravelmente saudável. Estava equipado a rigor, desde as sapatilhas ao boné de pala, em voga. Os óculos escuros conferiam-lhe outro toque de modernidade.
- De todo. Faça favor.
- Sabe, menina, na minha idade a companhia é um luxo e uma alegria.
- Caminha sozinho?
- Fisicamente sim, mas sou um homem de sorte. Nunca me sinto só.
- Isso é bom…
- Há por aí tanto jovem velho e eu que já sou velho, sinto-me cada vez mais jovem.
- O senhor também não é tão velho assim!
- Que idade me dá? – inquiriu com ar matreiro.
- Não sei… Talvez sessenta e tal.
- Oitenta e dois já cá cantam – rematou cheio de orgulho.
Parei de repente, abri os olhos e a boca de espanto e ia para dizer uma banalidade qualquer, mas nenhum som me saiu da garganta.
- Já estou habituado a essa reacção. Ao princípio, ninguém quer acreditar, mas olhe que é verdade.
O passo certo e firme com que me acompanhava, a vitalidade das suas palavras e aquele sorriso maroto escondiam um verdadeiro tesouro de longevidade.
Nem dei pelo passar do tempo no restante percurso. Estava embevecida com a história de vida de um estranho que, generosamente, decidira partilhá-la comigo. As pessoas mais velhas são de palavra fácil e quando sentem que são ouvidas, são de trato afável. Aquele homem tinha uma história de vida incrível.
Tivera um filho na Guerra do Ultramar, na Guiné, que regressara amrgo e revoltado com a vida. Nunca mais se integrara na vida civil do pós 25 de Abril e um dia o pai fora encontrá-lo fardado a rigor, com um tiro na cabeça. Abraçou-o fortemente contra o peito, fez-lhe um funeral a preceito e nunca se insurgiu contra aquela partida tão contra natura. Ninguém deve julgar os outros, pois ninguém conhece os seus demónios. Cada um de nós tem de travar as suas batalhas e o desfecho é pessoal e intransmissível.
Anos mais tarde perdera a casa numa derrocada na baixa de Coimbra. Fora um daqueles invernos impiedosos, que arrasam edifícios de tijolos e de carne e osso. Mudara-se para um pequeno apartamento, parcialmente comprado com o dinheiro do seguro.
- Foi pelo melhor – explicou. No sítio onde morava, já todos os rapazes da minha idade tinham morrido e eu não tinha com quem conversar. Agora tenho sete andares de vizinhos com quem dar à língua.
Há dezassete anos morrera a mulher com uma complicação respiratória, após uma pneumonia. Reformara-se um ano depois e a partir de então passou a ir todos os dias ao cemitério. Não para chorar as partidas, mas para pôr a conversa em dia. Leva sempre uma flor que deposita junto à fotografia, senta-se na berma da campa e conversa longamente com ela. A cumplicidade de uma vida mantivera-se intacta. Passa depois, na campa do filho e dá-lhe notícias dos netos.
Aos setenta anos diagnosticaram-lhe cancro da próstata. De inicio sentiu-se abalado, mas desde cedo teve a certeza que ia vencer a doença. Fez muitos amigos no hospital e entre os sobreviventes formou um grupo de convívio que, todos os domingos, vai almoçar junto.
- Depois disto decidi começar a praticar desporto e eis-me agora aqui a falar com a menina. Sou um grande tagarela, não sou?
Durante todo o relato pensava em todos aqueles que passam a vida inteira a queixar-se dos pequenos obstáculos diários com os quais se deparam. Pensava naquelas pessoas lamurientas e envinagradas que não conseguem retirar lições de vida da adversidade e chegam ao fim do seu percurso sem nada ter aprendido.
Quanto a mim, havia chegado ao fim do meu percurso de hoje. Transpirava abundantemente, mas nem dera conta do meu esforço físico. Bebia as palavras simples e sábias de um companheiro de caminhada, que tinha muito para me ensinar.
- Foi um prazer ouvi-lo, Sr?
- Sr. Feliz. É assim que toda a gente me chama.
Sorri por fora e por dentro. Não havia decerto nome mais apropriado!
O Sr. Feliz despediu-se gentilmente e seguiu o seu caminho. O meu seguia em sentido contrário. Lembro-me de olhar o céu encastelado e de formular um pedido: «Por favor, parem o Universo. Quero entrar outra vez!» Tive consciência, naquele exacto momento, de que havia muito terreno ainda a percorrer. O Universo certamente tinha um plano secreto para mim e ainda não tinha cumprido o meu papel naquela longa viagem.
Ana Paula Ramos Amaro
1 comentário:
De todos os contos aqui apresentados na edição 2009, o da Marlene Ferraz é merecidamente o melhor. Foi portanto bem escolhido para primeiro prémio. O meu aplauso ao júri e parabéns à autora do conto.
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